Família Grael: a tradição vitoriosa que se perpetua por gerações

Por Leandro Stein
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Martine Torben Marco Grael
Foto por Jonne Roriz / COB

A família Schmidt Grael é sinônimo de iatismo no Brasil. Três gerações do “clã” participaram dos Jogos Olímpicos, numa corrente que se perpetua há mais de 50 anos. Mais do que isso, o sobrenome também está diretamente atrelado às medalhas, com nove pódios dos familiares. Uma tradição que segue viva na vela em Paris 2024.

Os irmãos Marco Grael e Martine Grael estão em sua terceira participação Olímpica, com dois ouros conquistados pela velejadora, ao lado de Kahena Kunze. O pai de ambos, Torben Grael, colecionou marcas como atleta e permanece presente como técnico. É o recordista brasileiro em medalhas Olímpicas, com cinco, incluindo dois ouros, ambos ao lado de Marcelo Ferreira. O irmão, Lars Grael, também deu vasta contribuição ao esporte e levou dois bronzes. Os tios de Torben e Lars, Axel Schmidt e Erik Schmidt, foram campeões mundiais, além de representantes do Brasil em duas edições dos Jogos. Todos influenciados por Preben Schmidt, bisavô de Martine e Marco, que introduziu a paixão.

“Essa tradição é meio que consequência de uma paixão que vem sendo transmitida em família. Iniciou com o meu avô, depois com meus tios, minha tia, minha mãe, depois eu [Torben], Lars, meus primos e, agora, essa outra geração, com o Marco, a Martine [seus filhos] e o Nicholas [sobrinho, filho de Lars]. Obviamente, temos muita sinergia com o assunto vela, meio ambiente, mar... Falamos com frequência sobre isso”, contou Torben Grael, ao site do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).

Mais do que multicampeões da vela, os Grael também são embaixadores da modalidade. Lideram iniciativas para que a prática do iatismo se popularize no Brasil. "A gente estabeleceu um padrão na vela brasileira, internacional, que passou a ser respeitado", refletiu Lars Grael, em 2017, ao jornal O Povo. A história Olímpica da vela brasileira está protegida não apenas por um sobrenome, mas pelas lições que a família inspira.

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Os irmãos Lars e Torben Grael com a chama Olímpica na Rio 2016

Foto por Chris McGrath/Getty Images

O início da tradição com o avô e os tios

O pioneiro da família no iatismo brasileiro é o avô de Torben e Lars, o dinamarquês Preben Schmidt. Nascido na cidade de Fredericksberg, ele se mudou a Niterói em 1924, após se formar em engenharia civil. Schmidt participou de dezenas de obras no novo país, inclusive da construção do estádio de São Januário em 1927 e da conclusão do Elevador Lacerda, em Salvador, em 1930. Também colaborou em projetos de barcos, uma de suas paixões.

Preben Schmidt é considerado um dos precursores da vela no Brasil. Estimulou diferentes gerações da família a competir no mar. A filha Margrete Schmidt é uma das pioneiras entre as mulheres no esporte, com resultados expressivos mesmo contra homens. Faleceu precocemente num acidente de avião, mas deixou lições aos irmãos Axel e Erik Schmidt, gêmeos que foram os primeiros do clã a alcançar o reconhecimento internacional.

Apelidados de "Os Gêmeos do Mar", Axel e Erik Schmidt foram os primeiros brasileiros campeões mundiais no iatismo, com três títulos da classe Snipe, entre 1961 e 1965. Em Jogos Pan-Americanos, a dupla brasileira subiu ao pódio duas vezes, com o ouro em Chicago 1959 e a prata em São Paulo 1963 na classe Lightning. Também foram os primeiros da família nos Jogos Olímpicos: ficaram na sétima posição da classe Star em Cidade do México 1968 e na sexta colocação da classe Soling em Munique 1972.

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Os irmãos Axel e Erik Schmidt

Foto por Snipe.org

Os irmãos Grael aprendem a velejar num barco que foi prata em Estocolmo 1912

Filha de Preben, Ingrid Schmidt não teve uma carreira esportiva tão reconhecida, mas se dedicou a diferentes modalidades: vela, natação, esgrima, saltos ornamentais, tênis. Seus maiores sucessos competitivos aconteceram em concursos de beleza, a ponto de ficar na segunda colocação do Miss Brasil 1955. Casada com o coronel Dickson Grael, também envolvido com a prática esportiva nos círculos militares, Ingrid daria à luz aos irmãos Torben e Lars Grael.

As primeiras lições a Torben e Lars nas águas também foram dadas pelo patriarca da família, Preben Schmidt. Do avô eles herdaram a paixão pelos barcos. E a “sala de aula” dos futuros medalhistas Olímpicos seria simbólica: Schmidt era dono do barco Aileen, que conquistou a prata com a equipe da Dinamarca nos Jogos Olímpicos Estocolmo 1912, sob o comando de Werner Hansen. Foi a bordo da embarcação que os irmãos Grael começaram a velejar na Baía de Guanabara.

Nascidos em São Paulo, Torben e Lars viveram com a família em diferentes cidades, por conta da carreira militar do pai. As águas, de qualquer maneira, sempre foram um cenário em comum aos irmãos. Mas não necessariamente com um objetivo Olímpico em mente. “A vela foi uma coisa bem lúdica no começo. A gente até fazia algumas regatinhas, mas era uma coisa sem nenhuma pretensão", relembrou Torben, ao COB.

Ao longo da infância, Torben e Lars entraram em contato com outras modalidades: tênis, vôlei, basquete. A vela se tornou realmente um assunto sério a partir da década de 1970, quando a família Grael se estabeleceu em Brasília. A partir de então, os irmãos passaram a competir no iatismo, inclusive juntos. A capital federal foi uma excelente escola, por conta de seus ventos inconstantes. Depois, sob a tutela dos tios, os Grael tiveram aprendizagens diferentes nos ventos fortes e nas ondas de Búzios e Niterói.

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As primeiras medalhas Olímpicas do clã Schmidt-Grael

O apreço ao iatismo que se desenvolveu entre os irmãos Grael não se restringiu à competição. A evolução dependeu também dos estudos que englobavam diferentes aspectos do esporte. “Eu tinha muito interesse. É uma coisa que as pessoas dão pouca atenção hoje, mas eu trabalhava muito nos barcos, estudava muito meteorologia, livros sobre técnicas de afinamento de barco, de aerodinâmica...”, contou Torben.

De início, os Grael competiram juntos. Os irmãos apresentaram de vez seu potencial em 1978, quando Torben tinha 18 anos e Lars, 14: a dupla foi campeã mundial júnior na classe Snipe, treinados pelo tio Axel. Na época, os irmãos até optavam pelo sobrenome materno Schmidt, mais famoso no iatismo, mas a pressão os levou a adotar o Grael paterno. Os dois teriam outros sucessos na classe Snipe, levando depois o Mundial adulto em 1983 e 1987. Contudo, a história Olímpica dos netos de Preben Schmidt seguiu separadamente.

A estreia Olímpica dos Grael foi simultânea, em Los Angeles 1984. Como a classe Snipe não fazia parte dos Jogos, eles se encaixaram em outros barcos e com outros parceiros. Lars competiu ao lado de Glenn Haynes na classe Tornado e terminou na sétima colocação. Já Torben subiu ao pódio pela primeira vez. Em conjunto com Daniel Adler e Ronaldo Senfft, o iatista ganhou a prata na classe Soling - a mesma em que seus tios ficaram mais próximos da medalha. "Foi um resultado magnífico, que impulsionou a minha carreira de uma maneira muito importante”, recontou Torben, ao COB.

Já em Seul 1988, a família inteira pôde festejar. Torben Grael desta vez competiu na classe Star, ao lado de Nélson Falcão, e faturou o bronze. Lars Grael se manteve na classe Tornado e, agora ao lado de Clínio Freitas, também assegurou o bronze. Barcelona 1992, contudo, teve lembranças agridoces. De novo com Clínio Freitas, Lars terminou em oitavo na Tornado. Torben, por sua vez, ficou num modesto 11° lugar na Star. Em compensação, começava ali sua trajetória Olímpica ao lado de Marcelo Ferreira, seu principal parceiro.

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O primeiro ouro de Torben e a última medalha de Lars em Atlanta 1996

Os Jogos Olímpicos Atlanta 1996 voltaram a ser especiais para Lars e Torben. A primeira medalha de ouro da família Grael pintou nas águas dos Estados Unidos. Naquele período, Torben reforçava sua imagem como competidor de provas oceânicas e, com patrocínio para o novo ciclo, chegou mais longe ao lado de Marcelo Ferreira. A bordo do barco “Vida Bandida”, a dupla brasileira conquistou o título Olímpico na classe Star. O técnico era ninguém menos que o tio, Erik Schmidt.

“Não caiu a ficha na hora. Esse troço só quem passa é que entende como funciona. Essa é a realidade. Até quando cruzamos a linha de chegada, estávamos comemorando, mas é uma sensação tão indescritível que você não realiza. Você está lá no meio do oceano. É diferente de quando você está dentro de uma arena fechada ou em uma pista de atletismo, com o público em volta", afirma Torben. "Quando você chega a ganhar uma medalha de ouro é aquela sensação do dever cumprido: cheguei o mais alto que eu poderia chegar.”

Um dia depois do ouro de Torben, Lars Grael também subiu ao pódio mais uma vez na classe Tornado. O irmão mais novo competia ao lado de Kiko Pellicano e celebrou o bronze em Atlanta 1996. Todavia, aquela seria sua última participação em Jogos Olímpicos, aos 32 anos. Em setembro de 1998, Lars sofreu um grave acidente em Vitória. Enquanto competia, seu barco foi atingido por uma lancha e o velejador perdeu a perna direita.

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A vida de Lars Grael seguiu no mar

"Do auge da carreira a aceitar ser um deficiente físico, havia uma barreira psicológica considerável. Então, na verdade, pessoas que passaram por situações semelhantes foram fundamentais para me inspirar que a vida continuava. Enfrentar a vida do jeito que ela é, aceitar o próprio preconceito de, de uma hora para outra, me ver como deficiente", contou Lars, ao jornal O Povo, em 2017.

Lars Grael se afastou das competições inicialmente e passou a exercer cargos executivos dentro do esporte. Trabalhou inclusive com o irmão Torben, presente em Sydney 2000 e Atenas 2004 como coordenador técnico da seleção. Mais tarde, Lars retomou sua carreira como atleta e disputou seletivas Olímpicas na classe Star, incentivado pelo próprio Torben, mas sem superar Robert Scheidt e Bruno Prada pela vaga. Já em 2015, aos 51 anos, o veterano se sagrou campeão mundial na Star. Uma pena que a classe estivesse fora do programa Olímpico para a Rio 2016, o que impediu sua volta aos Jogos.

"Sempre que surgia qualquer convite para exercer qualquer cargo, função, voluntário, ia aceitando como forma de ocupar a mente. Passei a ter uma agenda bastante intensa. Começaram as palestras a partir de 2000. E voltar a competir foi extremamente saudável para eu fazer as pazes comigo mesmo. No ambiente onde dediquei a minha vida foi onde quase perdi a vida, que foi o mar, e fazer as pazes com o mar...", complementou Lars.

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Torben Grael e Marcelo Ferreira comemoram o ouro em Atenas 2004

Foto por Clive Mason/Getty Images

Os recordes estabelecidos por Torben Grael

Torben Grael passou a dividir sua carreira no iatismo Olímpico com as participações na America’s Cup, a regata oceânica mais prestigiada do planeta. Enquanto conciliava os eventos, seu desempenho em Sydney 2000 caiu um pouco - e ainda assim rendeu a quarta medalha da carreira. Novamente ao lado de Marcelo Ferreira, Torben conquistou o bronze na classe Star. Já a recuperação aconteceu em Atenas 2004, para retomar o topo do pódio.

Embora ainda competisse na America’s Cup, Torben Grael teve mais tempo de preparação à sua sexta participação nos Jogos Olímpicos. Conseguiu sua segunda medalha de ouro em Atenas 2004, a quinta no total, um recorde entre os atletas brasileiros - depois igualado por Robert Scheidt. Marcelo Ferreira, por sua vez, conseguia a terceira medalha em conjunto com o parceiro na classe Star. Torben, além do mais, teve a honra de ser o porta-bandeira do Brasil no Estádio Olímpico de Atenas.

“Se você for destacar qual Jogos Olímpicos foram os mais legais, eu diria que foram os de Atenas. Porque Atenas é o berço dos Jogos da Era Moderna e tem todo aquele simbolismo da Grécia antiga e dos Jogos. Eu fui porta-bandeira no desfile de abertura, a gente carregou a tocha aqui no Brasil e, até então, só havia um bicampeão olímpico, que era o Adhemar [Ferreira da Silva]”, declarou Torben, ao site do COB.

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Foto por Clive Mason/Getty Images

Martine e Marco honram o passado da família

Atenas 2004 também marcou a despedida de Torben Grael como atleta nos Jogos Olímpicos, aos 44 anos. A partir de então, o velejador passou a se dedicar principalmente a provas oceânicas, com novos sucessos - incluindo o título na Volvo Ocean Race, regata de volta ao mundo, em 2008/09. E sua semente já estava lançada para o futuro Olímpico. Se a família Grael não teve representantes em Beijing 2008 e Londres 2012, o sobrenome voltou a brilhar na Rio 2016 - em dose dupla e com direito a mais um pódio.

Filhos de Torben e da também iatista Andrea Soffiatti, Marco e Martine Grael navegavam ainda na barriga da mãe. Pegaram o gosto pela vela na infância, em Niterói, e passaram a competir desde cedo, com resultados expressivos. "Como em qualquer família, nossos pais queriam que os filhos seguissem seus passos, embora sempre tenham deixado claro que eu poderia fazer o que quisesse", contou Marco, à AFP, em 2016. "Sempre gostei de navegar, desde pequeno. Vivia perto da água e sempre tive contato com o mar."

Em 2016, a terceira geração dos Schmidt Grael pôde estrear nos Jogos Olímpicos. Marco Grael foi o 11° colocado na classe 49er. Já Martine ganhou logo o ouro, na classe 49erFX, ao lado de Kahena Kunze - filha de Claudio Kunze, também ex-velejador e campeão mundial juvenil. As duas eram amigas de infância e foram campeãs mundiais júnior, mas se separaram no nível adulto. Kahena já tinha deixado o esporte competitivo quando recebeu um convite de Martine para reeditar a parceria em 2013. Uma convocação ao sucesso.

Os resultados do ciclo anterior à Rio 2016 já eram bastante promissores, com um título mundial das brasileiras e a prata nos Jogos Pan-Americanos 2015. Contudo, nada comparado ao ouro Olímpico, especialmente por acontecer em casa. Foi uma regata final emocionante na Baía de Guanabara, em que quatro duplas tinham chances de pódio, mas Martine e Kahena acabaram com o ouro. Outro personagem especial estava nos bastidores, com o apoio de Torben Grael, agora como coordenador técnico da equipe brasileira.

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Marco Grael e Gabriel Simões

Foto por Matias Capizzano/Santiago 2023 via Photosport

Mais um ouro e a 11ª edição dos Jogos com os Schmidt Grael

Tóquio 2020 serviu para confirmar Martine Grael como herdeira de seu pai também no gosto por repetir façanhas. Novamente ao lado de Kahena Kunze, a dupla brasileira conquistou outro ouro na classe 49erFX. A primazia de subir ao topo do pódio em duas edições consecutivas dos Jogos Olímpicos, aliás, nem o pai conseguiu. Já o irmão Marco Grael, que tinha conquistado o ouro nos Jogos Pan-Americano 2019, terminou no 16° lugar da classe 49er, competindo com Gabriel Borges.

Os filhos de Torben Grael sustentarão a tradição familiar em Paris 2024. Martine Grael e Kahena Kunze tentarão o tricampeonato na classe 49erFX. Chegaram a levar inclusive a prata no evento-teste realizado na marina de Marselha, em 2023. Marco Grael, por sua vez, retorna para buscar seu primeiro pódio, ao lado de Gabriel Simões, na classe 4er. E não que o pai esteja longe. De novo ele será o técnico da equipe brasileira de vela.

"Nossa expectativa, é claro, é manter a tradição de trazer medalhas. O Brasil vem trazendo medalhas desde 1968 na vela, com exceção dos Jogos de 1972 e de 1992, então há uma grande expectativa de tentar manter essa tradição de trazer medalhas para o Brasil", comentou Torben, durante a apresentação da equipe rumo a Paris 2024. "É um lugar quente, meio instável, com condições variadas. Acho que é bom para nossa equipe".

Além dos irmãos Martine e Marco, outro velejador na família é Nicholas Grael, filho de Lars e ainda sobrinho de Kiko Pellicano e Márcia Pellicano por parte de mãe. Seus principais resultados são em uma classe que não é Olímpica, mas é outro herdeiro da tradição para transmitir a gerações futuras. "Tenho orgulho de passar a herança para a frente. Sabemos que não é fácil, seja no ambiente cultural, esportivo, empresarial. Fazer uma transmissão de valores, de paixão e desejo, de uma geração para outra, é sempre difícil", afirmou Lars Grael, ao Terra, em 2021. A chama permanece acesa entre os Grael, há mais de 100 anos em alto mar.

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