Rugby para Todos: o projeto do Brasil que forma atletas Olímpicos e transforma vidas através do esporte
Em quase duas décadas, milhares de crianças passaram pelo Instituto, criado na favela de Paraisópolis, em São Paulo, que tem o rugby como instrumento de inclusão social. Bianca e Leila Silva, atletas Olímpicas, lá começaram. O Olympics.com entrevistou um dos idealizadores do projeto, Maurício Draghi.
São Paulo, Brasil. Ano 2004. Maurício Draghi e Fabrício "Bi" Kobashi eram atletas da elite do rugby nacional, ainda bastante distante de ter uma seleção reconhecida internacionalmente. Sequer imaginavam que pouco mais de uma década depois o país seria sede de uma edição de Jogos Olímpicos (Rio 2016) e que a modalidade no Brasil se transformaria tanto em tão pouco tempo. Ademais, que seriam bastante responsáveis por isso.
Ambos atuavam pela seleção brasileira (que ainda não era conhecida como “Tupis”) e competiam pelo tradicional clube paulistano de origem francesa, o Pasteur. Os treinos do clube eram no Morumbi, bairro da capital paulista próximo a áreas extremamente humildes, como a comunidade de Paraisópolis.
Paraisópolis é um universo. Não é simplesmente um bairro, mas sim uma "cidade" dentro de São Paulo. Com um século de existência, Paraisópolis é a quinta maior favela do país e possui mais de 100 mil pessoas, vivendo em pouco mais que um quilômetro quadrado.
Um cenário que escancara a diferença extrema na renda da população e a dificuldade de acesso dos moradores aos serviços públicos. Não apenas à saúde e educação, mas também ao esporte e ao lazer, o que expõe dezenas de milhares de jovens moradores do local à vulnerabilidade.
Nestas regiões, quer seja em São Paulo ou nos grandes centros urbanos brasileiros, as oportunidades são raras. Ou sequer existem.
Era comum Draghi e Bi Kobashi observarem e terem contato com crianças destas zonas menos favorecidas, quando deslocavam-se para os treinos do time de rugby do Pasteur.
A diferença social, a falta do acesso universal à prática de esportes e o distanciamento do rugby em relação aos brasileiros com menor poder aquisitivo, incomodavam ambos. A seleção brasileira não representava o povo do Brasil. O rugby não estava ao alcance de todos.
Inquietos e inconformados, decidiram agir: “Não pode haver desigualdade. É inaceitável”, disse Draghi.
O Olympics.com conversou com Maurício Draghi, um dos idealizadores do projeto "Rugby para Todos", que através da bola oval tem transformado a vida de milhares de jovens brasileiros em condições de vulnerabilidade.
O primeiro treino: mais de 100 crianças
Em um dia das mães de 2004 decidiram ir ao campo de futebol de Paraisópolis, a fim de conversarem com o líder comunitário e utilizarem o campo para poder ensinar o rugby às crianças da área. Encontraram por lá um típico cenário do futebol de várzea, reduto de inúmeras identidades com que o futebol menor contribui, uma improvisada organização, inclusive com um boi amarrado ao alambrado.
Foram até ao bar do campo. No começo da conversa houve uma desconfiança, logo rompida porque deram-se conta de que o responsável pelo campo era um bom e velho conhecido de Draghi, Chiquinho, tendo sido seu bedel no colégio onde estudou.
Ideias alinhadas e trâmites organizados, no domingo seguinte a seleção brasileira juvenil realizou um jogo-demonstração em Paraisópolis. Na ocasião, a dupla (Draghi e Bi) prepararam 40 pequenos bilhetes que foram distribuídos para crianças e pais de interessados, que estiveram a observar a exibição do esporte. Estes bilhetes eram um convite para o primeiro treino de rugby que eles dariam para as crianças da região, que aconteceria na quarta-feira seguinte.
Havia sido dado o "chute de saída".
Naquela segunda quarta-feira de maio de 2004, quando a dupla chegou para - aí sim - fazer o primeiro treino, havia, no campo de Paraisópolis, mais de uma centena de crianças.
Os treinos decorreram com regularidade, mas com o tempo passaram a surgir demandas muito mais imediatas, como as de praticantes que chegavam com dor-de-cabeça para as atividades esportivas porque não tinham tido sequer uma refeição no dia. Já outros, precisavam de um acompanhamento psicológico. Com o tempo, lanches passaram a ser distribuídos e um psicólogo passou a fazer parte da equipe que organizava os treinos.
Inciativa que passou a ser muito mais que difundir o rugby
Com o surgimento de questões mais sérias, consequência da falta de acesso à informação, universalização da educação e da prática esportiva no Brasil, Draghi e Bi foram percebendo uma mudança no objetivo do projeto.
"Inicialmente, era o de ensinar o Rugby. Entretanto, percebemos que antes disso era preciso uma iniciação esportiva, uma base, com acompanhamento multidisciplinar, como a presença - além do psicólogo - de uma nutricionista e de um fisioterapeuta", lembrou Draghi.
Ao passo que observavam isso, conseguiram desenvolver um projeto de jovem aprendiz para a inserção dos jovens no mercado de trabalho.
Com seis meses já havia crianças que jogavam muito bem e, com isso, a necessidade de uma segmentação, o que significava construir uma estrutura organizacional maior e ainda mais recursos, humanos e financeiros.
Nos primeiros três anos tudo foi feito de maneira voluntária, em uma espécie de laboratório. "Foi tudo na tentativa, erro...tentativa, acerto", lembrou Draghi. "Apenas no quarto ano de atividades é levantado o primeiro orçamento", acrescentou.
A fundação do "Instituto Rugby para Todos" e seu papel além do esporte
Com o crescimento das atividades dentro e fora de campo, de questões a serem resolvidas de diversas naturezas e cada vez mais numerosas, para além do esporte, a autonomia passou não apenas a ser uma urgência, como também uma realidade.
Em 2009 é criado o Instituto Rugby para Todos. Com isso, os resultados das ações passaram a ter grande projeção, através de uma análise universal de todos os participantes e suas aptidões, em uma metodologia que passou a ser referência na utilização do esporte como instrumento de inclusão social. "Eu não acreditava tanto na educação o quanto eu acredito hoje", confessou Fabrício Kobashi, idealizador do projeto, para o documentário "Leões de Paraisópolis - O rugby que vem da Favela".
"O rugby deixava de ser fim, para ser meio. Parte de um processo de preparação para a vida. O Instituto passou a gerir carreiras e rotinas dos participantes, quer seja no esporte ou fora dele", comentou Draghi.
Com o passar dos anos e a evolução do Instituto, crianças e adolescentes já tinham à disposição várias oportunidades, como em fazer um curso superior - realidade distante nas áreas menos favorecidas - e conciliá-lo com uma atividade profissional, ou mesmo seguir no rugby. Para isso, foram organizadas equipes de ponta nos mais competitivos campeonatos do Brasil: as Leoas e os Leões de Paraisópolis.
O trabalho do Instituto Rugby para Todos faz-se digno de todo o reconhecimento. Segundo a instituição, ao longo dos mais de 15 anos de atividades, 5000 crianças foram atendidas, 2000 em formato de atendimento continuado. Maurício Draghi hoje é Agente Formador de Políticas Públicas e, para ele, não basta ter uma boa ideia: “É preciso uma boa comunicação e transparência”, enfatizou.
Atletas Olímpicas, Leila e Bianca Silva começaram no projeto "Rugby para Todos"
Em meio às mais adversas condições - que poderiam fazer com que os jovens desistissem da prática esportiva, sobretudo em esporte distante de ser totalmente profissional, diferente do futebol - Paraisópolis forceneu ao rugby do Brasil incontáveis talentos.
Vários dos jovens que começaram no projeto entraram no esporte de rendimento e alcançaram as seleções nacionais do Brasil, feminina e masculina, na variante de sete ou quinze atletas. Casos de Leila e Bianca Silva, que competiram em edições de Jogos Olímpicos.
Revelada pelo Rugby para Todos, Leila Silva esteve com as Yaras (como são conhecidas as jogadoras da seleção brasileira feminina de rugby) em Tóquio 2020. Em entrevista recente para o Olympics.com, Leila comentou que o rugby, através do projeto, ensinou a se expressar e a tomar decisões dentro e fora de campo.
Relembrou que, para jogar, precisava ir bem na escola, o que a fez tomar gosto pelos estudos. “O esporte ajudou a me formar como pessoa”, comentou.
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Escolhida atleta do ano do rugby em 2018 pelo Comitê Olímpico do Brasil, Bianca Silva - em entrevisra para o podcast brasileiro "Mesa Oval" - lembrou com carinho sobre o seu começo no rugby em Paraisópolis, e que o projeto a ensinou muito. "É preciso entender que nada vem fácil. Tenha como referência as pessoas que te dão força", disse Bianca.
Além disso, completou: "O projeto permitiu acreditar mais em mim mesma e fez do rugby a minha vida, me apresentou pessoas incríveis com as quais convivo, além de experiências."
Maurício Draghi: "A sociedade não pode tolerar a desigualdade"
Inconformismo e Inquietação. Assim como escrito no início da matéria, a desigualdade social e a falta de cultura esportiva levaram à constituição do que é hoje o “Instituto Rugby para Todos”.
Os resultados também têm mostrado que o projeto tem sido muito bem sucedido. "Tudo isso tem sido alcançado de maneira correta, honesta e íntegra, o que me deixa feliz", refletiu Draghi. "Mas não só os resultados do Instituto em si, mas sobretudo os das crianças e adolescentes participantes dele", considerou.
Tratam-se de resultados dentro de campo, nos clubes ou na seleção brasileira - casos de Bianca e Leila Silva entre as Yaras; Robert Tenório, Adrio, Brendon, Igor Luciano e Varejão entre os Tupis -, mas também fora dele, como a saída profissional e o êxito nos estudos.
Habituado aos desafios, Draghi sabe que a jornada que o "Rugby para Todos" tem pela frente é fundamental para os jovens em condição de vulnerabilidade. Não se assusta com as dificuldades que podem futuramente se configurar: "A sociedade não pode tolerar a desigualdade. Mantemos o foco no objetivo do projeto", comentou.
Disponibilizar as oportunidades de uma maneira universal e irrestrita. Para todos. Como tem que ser. O jeito certo. O aceitável.
Oportunidades para todos, assim como é o rugby e que Draghi resumiu ao finalizar: “O rugby é uma oportunidade para se expressar. O rugby é um esporte para todos e as oportunidades também são para todos.”