Há 40 anos, Carlos Lopes e Rosa Mota consagravam Portugal na maratona

Por Leandro Stein
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Carlos Lopes (POR)

Os Jogos Olímpicos Los Angeles 1984 ofereceram marcos a Portugal. Pela primeira vez, os atletas portugueses conquistaram três medalhas, número superado apenas em Tóquio 2020. Também foi a primeira vez que o país subiu ao topo do pódio, com o ouro no peito. Todas as medalhas vieram em longas distâncias no atletismo, duas na maratona.

Los Angeles 1984 consagrou Carlos Lopes, eleito o “atleta do século” pelo Comitê Olímpico de Portugal (COP) em votação realizada em 2009. O ouro do português na maratona, afinal, seria cercado de feitos. Aos 37 anos, Lopes se tornou o mais velho a ganhar a prova. De quebra, estabeleceu o recorde Olímpico, que perdurou por 24 anos. O fundista ainda se tornaria recordista mundial da distância, um ano depois.

Carlos Lopes continua celebrado em Portugal por suas façanhas e pela própria maneira como superou as adversidades para cumprir seu objetivo. “Quando as pessoas se dirigem a mim e agradecem pelo que fiz, essas é que são de fato as medalhas, que todos sentem e que faz parte do orgulho de um país”, afirmou Lopes, ao Tribuna Expresso, em 2017.

Além de Carlos Lopes, Los Angeles 1984 serviu como uma anunciação a Rosa Mota. Eleita pela Associação Internacional de Maratonas e Provas de Estrada (AIMS) como a melhor maratonista da história, a portuguesa ganhou o bronze em LA84 e antecipou o sucesso que faria em Seul 1988, quando alcançou o ouro. Foi a primeira mulher do país a ser medalhista Olímpica e, depois, também a pioneira no topo do pódio. Portugal ainda levaria mais um bronze em Los Angeles 1984, nos 5.000m, no grande feito da carreira de António Leitão.

Carlos Lopes, o menino da aldeia que virou atleta Olímpico

Nascido em 1947, Carlos Lopes cresceu na pequena Vildemoinhos, mais velho de oito irmãos - dois deles também atletas. Ele, curiosamente, ainda cogitou ser jogador de futebol, mas o físico franzino era empecilho. A aptidão à corrida falou mais alto e tinha a inspiração de um tio, Manuel Lopes, que figurou entre os melhores fundistas do país. De família humilde, porém, Carlos Lopes precisou trabalhar desde os 13 anos. Começou como servente de pedreiro e passou por vários empregos, até virar serralheiro ao lado do pai.

Carlos Lopes se destacou em corridas juvenis pelo Lusitano de Vildemoinhos e assinou em 1966 com o Sporting, seu clube de coração. A mudança a Lisboa, todavia, trouxe desafios. “Foi um bocado doloroso porque nunca tinha saído debaixo das saias da minha mãe. Quando cheguei à zona da Batalha comecei a pensar ‘No que é que te vais meter?’ e as lágrimas começaram a cair. Mas também depressa me recompus e disse: ‘Eu não quero voltar à minha terra como um falhado’. E isso criou em mim um espírito e uma força tremenda”, relatou ao Tribuna Expresso, em 2017.

No Sporting, Carlos Lopes passou a treinar com Mário Moniz Pereira, histórico técnico conhecido como “Senhor Atletismo”. O fundista estava num grande clube, mas ainda dependia de outros empregos. Trabalhou como torneiro e cumpriu o serviço militar. Depois de deixar a tropa, Carlos Lopes cogitou largar o esporte. Ajudou conseguir um emprego menos braçal no Diário Popular, cujo dono era o presidente do Sporting. O clube fazia parte de sua vida, a ponto de conhecer sua esposa por lá, também atleta.

Os resultados de Carlos Lopes se tornaram mais expressivos a partir de 1970. Foi pentacampeão nacional do cross-country, enquanto batia recordes nos 5.000m e nos 10.000m. Estreou nos Jogos Olímpicos em Munique 1972, mas sucumbiu nas qualificatórias. O ciclo seguinte seria mais positivo. O fundista conseguiu trabalho em um banco, que aliviava ainda mais sua rotina e permitia treinar duas vezes por dia. Aumentar essa carga foi essencial em sua ascensão. Em 1976, Lopes se sagrou campeão mundial no cross-country.

Carlos Lopes chegou em alta a Montreal 1976. Ganhou sua primeira medalha Olímpica nos 10.000m, com a prata. Era o primeiro pódio do atletismo de Portugal na história dos Jogos. Contudo, o feito foi agridoce: Lopes liderou a maior parte da corrida e perdeu no final para o finlandês Lasse Virén. "Aquilo já era uma vitória, mas foi uma frustração tremenda, porque queria ser campeão Olímpico e perdi. Custou-me muito, mas foi uma lição tremenda. Aprendi muito com essa derrota", disse Lopes, no documentário ‘O Homem da Maratona’.

Decepcionado, Carlos Lopes desistiu da maratona e dos 5.000m em Montreal 1976. E o próximo ciclo seria atrapalhado pelas lesões, que o tiraram de Moscou 1980. Lopes temia que uma cirurgia abreviasse a carreira e encontrou-se apenas através da acupuntura, ajudado por Kiyoshi Kobayashi, referência do judô em Portugal. O sucesso da terapia deu uma “segunda carreira”. Voltou com tudo: quebrou o recorde europeu dos 10.000m, ganhou a tradicional Corrida de São Silvestre no Brasil e foi novamente campeão mundial de cross-country em 1983.

O marcante ouro em LA84

Até pela idade, Carlos Lopes passou a se dedicar à maratona. Avaliava que suas maiores chances de ser campeão Olímpico estavam na distância mais longa. O veterano passou a disputar provas para conhecer os adversários, mesmo sem terminá-las. O detalhe é que não ganhou uma maratona sequer até Los Angeles 1984, embora tenha quebrado o recorde europeu com a segunda colocação na Maratona de Roterdã em 1983.

“Acima de tudo tinha quase a certeza de que ficava nos três primeiros lugares. Mas claro que o objetivo principal era ser o primeiro. Isto porque andei dois anos e meio a preparar a maratona. Repare que até aos Jogos nunca ganhei maratona nenhuma”, sublinhou Lopes, ao Tribuna Expresso.

Semanas antes dos Jogos Olímpicos, contudo, Carlos Lopes correu grande risco. O maratonista treinava em via pública quando foi atropelado em frente ao Estádio da Luz. Seu cotovelo quebrou o vidro do carro e ele ficou com a coxa esfolada, mas, por sorte, não sofreu qualquer fratura. Após três dias em observação no hospital, Lopes já voltou a treinar e pôde ir a Los Angeles. Teve uma preparação específica, ao viajar separadamente da delegação e ficar num hotel, distante da agitação da Vila dos Atletas. Sua esposa o acompanhou.

Carlos Lopes estava tão seguro que seu coração pulsava a 45 batimentos por minuto antes da prova. "Nos 20 primeiros quilômetros, aquilo é um passeio. A partir dos 30 é a parte mais crítica, em que todos desconfiam de todos", analisou. Especialista em gerir seu ritmo, o maratonista se preparou para disparar nos cinco quilômetros finais: “Por que? Porque eu era só o melhor atleta do mundo dos 10.000m e um dos melhores em 5.000m. Tinha uma vantagem tremenda sobre todos. Com estes elementos é fácil gerir bem a coisa.”

Já nas proximidades do Coliseu, Carlos Lopes ganhou distância e desfrutou os últimos dois quilômetros. Aproveitou a entrada triunfal para saudar os 90 mil torcedores nas tribunas e tinha muito gás para a volta Olímpica após cruzar a linha de chegada. Só parou quando percebeu as dificuldades de muitos concorrentes que chegaram depois. "Aquilo foi tão perfeito que não sei se gostaria de voltar a repetir, não vale a pena fazer mais nada. As coisas que fiz, perduram. Por que faria diferente?", rememorou.

A prova soberana de Carlos Lopes rendeu o recorde Olímpico, só batido em Beijing 2008, pelo queniano Samuel Wanjiru. O português ganhou um churrasco do primeiro-ministro de Portugal, um prêmio do rei da Espanha e se encontrou com o presidente dos Estados Unidos na Casa Branca. Ronald Reagan o via como exemplo, por vencer a maratona aos 37 anos. E Lopes fez mais. Em 1985, ganhou a Maratona de Roterdã com 2h07min12s, baixando em 53s o recorde mundial. Foi dono da marca por três anos e aposentou-se aos 40 anos. Seguiu ligado ao atletismo como diretor da modalidade no Sporting.

Foto por Mike Powell/Allsport

O bronze de Rosa Mota

Se por um lado Carlos Lopes coroava o esforço de uma vida na maratona masculina, a maratona feminina ratificava um fenômeno ascendente chamado Rosa Mota. Outra portuguesa a subir no pódio em LA84, e como nenhuma outra mulher do país jamais havia feito.

Rosa Mota nasceu na cidade do Porto, em 1958, e começou a correr no liceu onde estudava, para acompanhar os amigos. As vitórias se tornaram naturais e indicavam ali uma fora de série. Sua grande adversária era a asma, que quase encerrou sua carreira. Sob a tutela do médico José Pedrosa, que virou seu treinador, Mota recalculou sua rota e passou a se dedicar às distâncias mais longas.

O Brasil marcou a história de Rosa Mota. A partir de 1981, a portuguesa dominou a São Silvestre, com seis títulos consecutivos. Já a primeira participação numa maratona ocorreu em 1982. A distância sequer era permitida a mulheres em Portugal, mas Mota pôde disputar a edição inaugural da prova no Campeonato Europeu de Atletismo, em Atenas. Não só competiu, como ganhou o ouro. A chegada era como uma profecia: aconteceu no Estádio Panatenaico, berço dos Jogos Olímpicos em 1896.

"Em 1982, quando venci a maratona nos campeonatos europeus, eu descobri a minha prova ideal… Tenho resistência, mas não tenho muita velocidade. Quanto maior a distância, mais confortável me sentia", disse Rosa Mota à RTP, em entrevista de 1992. "É preciso gosto pelo que se faz, dedicação e esforço… Corria para ganhar, mas não para fazer recordes."

Rosa Mota chegou bem credenciada para a maratona dos Jogos Olímpicos Los Angeles 1984, após vencer a Maratona de Chicago e a Maratona de Roterdã em 1983. Expectativas cumpridas com a medalha de bronze, logo atrás da americana Joan Benoit e da norueguesa Grete Waitz. Rosa Mota, de qualquer maneira, apenas começava a construir sua lenda. "Acabar uma prova nos Jogos Olímpicos é bom...ter uma medalha é excelente!", diria. Viria bem mais.

A volta de Rosa Mota aos Jogos Olímpicos, em Seul 1988, rendeu o inédito ouro a uma mulher portuguesa. E a lista de medalhas não parou por aí: foi campeã do Mundial 1987 e de mais duas edições do Campeonato Europeu. Mota conquistou ainda algumas das maratonas mais tradicionais do planeta - Boston, Londres e Tóquio entre elas. Das 21 maratonas que a lusitana disputou, de 1982 a 1992, ela venceu 14 - além de ganhar uma prata e dois bronzes. Somou sete títulos nas chamadas “majors”, as principais provas do mundo.

Por fim, merece menção ainda António Leitão, outro medalhista de bronze de Portugal em Los Angeles 1984 numa prova de fundo. O atleta do Benfica acumulava conquistas juvenis e recordes nacionais, quando atingiu o topo da carreira no Coliseu. Tinha 24 anos e liderou a maior parte dos 5.000m, mas foi ultrapassado nos 200m finais pelo marroquino Saïd Aouita (que estabeleceu o recorde Olímpico) e pelo suíço Markus Ryffel. Leitão correu até os 31 anos, quando uma doença crônica limitou sua carreira. Faleceu em 2012, aos 51 anos.