Arritmia, cirurgia, risco de parar: Henrique Marques correu contra o tempo e vira aposta do Brasil no Pré-Olímpico de Taekwondo 2024
Henrique Marques estava prestes a viver um sonho nos Jogos Pan-Americanos de 2023. Aos 19 anos, o jovem seria um dos representantes brasileiros no taekwondo. A chance inédita para o atleta, no entanto, se desfez na reta final da preparação rumo a Santiago. Henrique descobriu uma arritmia cardíaca, que não apenas o tirou da competição, como também o impediu de treinar e poderia ter encerrado sua carreira. Somente quatro meses depois de passar por uma cirurgia, o taekwondista natural de Itaboraí lutará por sua estreia nos Jogos Olímpicos Paris 2024.
Diante da corrida contra o tempo, a presença de Henrique Marques no Pré-Olímpico das Américas 2024 é uma imensa vitória. O taekwondista será um dos três representantes do Brasil em busca de vagas para a modalidade em Paris 2024. A competição qualificatória acontecerá em Santo Domingo, na República Dominicana, entre 9 e 10 de abril.
Henrique realizou uma série de avaliações médicas a partir de agosto. Em dezembro, passou por uma cirurgia para se recuperar da arritmia, num caso considerado raro. A volta aos treinos aconteceu em janeiro. No início de fevereiro, o taekwondista conquistou a medalha de ouro do Canada Open na categoria até 80 kg. Uma semana depois, veio a prata no US Open. Os resultados pesaram para a escolha de Henrique como um dos representantes do Brasil no Pré-Olímpico.
“Para mim, eu já nem tinha esperanças de ser chamado, porque fiquei de fora dos Jogos Pan-Americanos, que é a competição que ia determinar quem iria para o qualificatório. A surpresa foi muito grande”, contou Henrique Marques, em entrevista ao Olympics.com. “Graças a Deus, eu me destaquei no Canadá e no US Open, duas competições que eram parte para definir quem iria. Acredito que essas duas competições que determinaram a minha escolha para o qualificatório.”
A concorrência para as vagas no Pré-Olímpico era bastante dura, sobretudo entre os homens, considerando os resultados do Brasil nos últimos anos. Só dois taekwondistas foram escolhidos entre todas as categorias do masculino. Maicon Siqueira, bronze nos Jogos Olímpicos Rio 2016, ficou de fora da seleção, assim como Ícaro Miguel e Paulo Melo, medalhistas em Mundiais. Os escolhidos foram Edival Pontes, o Netinho, prata no Campeonato Mundial de 2022, e Henrique Marques. O jovem de 20 anos cresce com os resultados recentes e representa também uma renovação.
“Acho que foi tipo uma segunda chance, sabe? De provar que sou capaz. Eu venho me destacando em competições durante este tempo todo”, reflete Henrique. “Da maneira que todos os atletas que estavam disputando [as vagas] teriam grandes chances de ir para esse qualificatório e de se destacar nas Olimpíadas, eu acredito que também tenho. Então pra mim é uma segunda chance. Ano passado, infelizmente, fiquei de fora dos Jogos Pan-Americanos. Ter essa oportunidade hoje é algo inacreditável para mim, porque passei por todo esse processo.”
Henrique Marques atualmente ocupa o 20° lugar no ranking da categoria até 80kg. No entanto, o brasileiro possui vitórias recentes contra adversários do top 5, como o americano CJ Nickolas e o coreano Seo Geon-woo. Seu principal adversário no Pré-Olímpico será o dominicano Moisés Hernández, contra quem Henrique também possui vitória no último ano.
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Como Henrique Marques superou as provações
Os Jogos Pan-Americanos de 2023 poderiam oferecer um passo além na carreira de Henrique Marques. A descoberta do problema cardíaco aconteceu dois meses antes da competição em Santiago. Henrique realizou uma bateria de exames, em diferentes hospitais, correndo contra o tempo em busca do Pan. Sequer podia fazer exercícios de alta intensidade, então parou de treinar naqueles meses. A arritmia impediu sua presença no Chile.
“Eu estava bem até de cabeça. Porém, fiquei um pouco chateado, porque eu queria estar lá, era uma competição de nível altíssimo e eu tinha grandes chances de medalha, até mesmo de ser campeão. Ver a final da minha categoria que me deixou um pouco triste, mas sabendo que, depois da cirurgia, ia dar tudo certo e eu voltaria”, relata o taekwondista. O ouro no Pan ficou com o americano CJ Nickolas, enquanto a prata foi do colombiano Miguel Ángel Trejos - dois oponentes já derrotados por Henrique. Lucas Ostapiv, que representou o Brasil na categoria, levou o bronze.
Para Henrique, fez a diferença o apoio recebido desde a descoberta da alteração. O taekwondista optou por não pesquisar tanto sobre o problema cardíaco, para não focar no “lado ruim”. Sua ideia era lidar com tranquilidade, a partir da ajuda que recebeu de diferentes pessoas dentro da Confederação Brasileira de Taekwondo (CBTKD). Com um lado religioso, também confiou na sua fé, de que o processo daria certo ao final.
“Pra mim foi tranquilo, porque os médicos, a confederação brasileira e meu técnico me deixaram bem calmo em relação a essa questão de preocupação”, afirma Henrique. “A confederação brasileira se disponibilizou bastante, para todos os custos, então só tenho a agradecer a toda a equipe médica que trabalhou no meu caso, em especial a Doutora Stefhania [Sad, médica da CBTKD]. Não foi um caso normal e vão até publicar.”
Henrique Marques correu inclusive o risco de ter que, precocemente, encerrar sua carreira no esporte de alto rendimento: “Depois da cirurgia eu soube que tinha a possibilidade de me aposentar. Estava tranquilo já, já tinha passado. A cirurgia foi 100%, não tenho mais nenhuma arritmia cardíaca. Mas fiquei bem preocupado depois de saber que tinha esse risco.” Com sua recuperação, Henrique seguirá um acompanhamento de rotina, mas sem cuidados particulares sobre seu coração. Fará exames de seis em seis meses para monitorar os batimentos cardíacos. Seus próprios resultados nos testes físicos melhoraram.
“Eu treino do jeito que eu treino, não sinto nada. Então está sendo tranquila essa recuperação. Estou bem, não sinto dor, não sinto nada”, conta o atleta. “Depois que eu fiz essa cirurgia, meu VO2 [volume de oxigênio] melhorou. Os médicos disseram que é normal, porque meu coração era meio que um coração ‘de gente velha’, entre aspas. Eu me sinto mais disposto, eu me sinto melhor.”
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Os bons resultados em 2024 e a surpreendente convocação
A partir de janeiro, com sua volta aos treinos em intensidade moderada, Henrique Marques tentaria retomar a curva ascendente de sua carreira. O ano de 2022 foi bem importante. Henrique participou pela primeira vez do Campeonato Mundial de Taekwondo e alcançou as quartas de final. Também levou a prata nos Jogos Sul-Americanos, com apenas 18 anos. Já em 2023, ficou perto da medalha no Grand Prix de Roma, além de ganhar dois ouros em torneios menores. O trabalho neste recomeço era recuperar o ritmo, após os meses parado.
O desempenho de Henrique falou por si em fevereiro. O ouro no Canada Open veio acompanhado pelo prêmio de melhor atleta masculino da competição. Logo depois, a prata no US Open atestava o alto nível competitivo do brasileiro. Os torneios não eram necessariamente os mais importantes do ciclo Olímpico, mas Henrique conseguiu bons resultados contra adversários bem ranqueados.
“Eu fui para essas competições sabendo do meu nível, sabendo do meu potencial. Porém, por ficar muito tempo fora, é claro que tem aquela insegurança. Porém, fui confiante. Confio no meu trabalho, o trabalho que eu vim fazendo até as competições junto com a confederação brasileira, com meus técnicos, com toda a parte física”, conta Henrique.
O taekwondista também confessa que, por pensar que não tinha tantas chances de ser convocado para o Pré-Olímpico, após a ausência no Pan, foi despreocupado para os torneios no Canadá e nos Estados Unidos: “Fui com a cabeça leve e só entreguei o meu trabalho. Acho que por esse fato de não ter levado esse peso pra competição que me aliviou mais e eu consegui entregar o resultado que eu entreguei.”
A convocação para o Pré-Olímpico das Américas, quando veio, não deixou de surpreender as próprias expectativas de Henrique. A melhor surpresa possível. Coube a ele, então, corresponder a confiança com dedicação. As últimas semanas guardam uma rotina intensa de treinos e estudos dos adversários: “Assistimos a lutas, treinamos em cima disso todos os dias, focando bastante nesse qualificatório para dar o máximo, sem erros. A gente está trabalhando duro, trabalhando firme, para que essa vaga venha e venha bem tranquila.”
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O taekwondo venceu o jiu-jitsu e o futebol
Henrique Marques se dedica ao taekwondo desde a infância. O garoto cresceu em Porto das Caixas, uma região periférica de Itaboraí, no interior do Rio de Janeiro. Conheceu o esporte através de um projeto social. De início, Henrique praticava jiu-jitsu. Quando chegava mais cedo para as aulas, o menino ficava assistindo à equipe de taekwondo. Criou interesse e contou com o apoio de uma atleta Olímpica para começar: Iris Sing, taekwondista do Brasil nos Jogos Olímpicos Rio 2016 e que participava do mesmo projeto.
Henrique não tinha condições de frequentar as aulas de taekwondo, com um custo de R$50 por mês. Iris percebeu a maneira como o menino ficava vidrado ao assistir às aulas e se aproximou dele durante um culto. Ofereceu para a mãe de Henrique uma bolsa no taekwondo, em que a família pagaria somente 50% da mensalidade. A partir da oportunidade, o garoto se aprimorou na modalidade.
“Eu chegava bem cedo para assistir ao treino do taekwondo. Eu ficava vendo os troféus, os quadros da academia. Ficava admirando, sabe? E via o treino de taekwondo em si. Na época eu não entendia muito, via um monte de doido chutando assim, gritando. Foi daí que eu tive essa noção do taekwondo. Nunca tinha vivenciado, mas foi o primeiro contato que eu tive”, relembra Henrique.
“O taekwondo é a fonte de tudo na minha vida. Minha fonte de renda, de viver coisas que nunca imaginei viver. Já viajei para lugares que nunca imaginei. Nem imaginava sair daqui. Moro em Itaboraí, Porto das Caixas. É um bairro muito humilde, com pessoas humildes. Então o taekwondo chegou na minha vida para mudar muita coisa”, complementa. “O taekwondo é uma paixão muito grande no meu coração.”
Henrique também teve seus momentos de dúvida em relação ao taekwondo. Chegou a sair dos treinos por volta de 2014. Foi tentar a sorte em outro esporte bem mais comum no Brasil: o futebol. Dentro de campo, o chute de Henrique garantia gols como atacante. Atuou por um time chamado Gonçalense e foi campeão niteroiense. Passou em peneiras também no Botafogo e no Grêmio. Entretanto, a dificuldade para frequentar os treinos na cidade do Rio de Janeiro atrapalhou seus planos.
Além de Iris, outra pessoa decisiva para o sucesso de Henrique no taekwondo é o seu treinador, Diego Ribeiro. Seu projeto como professor na modalidade começou no quintal da própria casa em Itaboraí. Foi ele quem lapidou o pupilo e hoje o treina também na seleção. O técnico via a aptidão de Henrique no taekwondo e insistia para que ele continuasse.
“Não sei como, mas o Diego sempre viu algo em mim”, diz Henrique, com um sorriso no rosto. “A gente tem um entrosamento muito bom. Gosto muito do jeito que ele coordena os treinos, da maneira que ele lida com as coisas. Ele consegue solucionar coisas tanto fora quanto dentro da quadra muito rápido. Isso ajuda qualquer atleta. Não é à toa que ele é um dos melhores do mundo. Essa conexão que a gente tem é muito boa, desde pequeninho já venho na escola dele.”
O orgulho da mãe em Porto das Caixas
Já a grande influência de Henrique é a sua mãe, Rosiane. Ela também abriu os olhos do filho em relação ao taekwondo. Quando o futebol não dava mais certo, uma conversa entre mãe e filho enfatizou qual o melhor caminho para seu talento. O taekwondo estava mais próximo de Porto das Caixas e dava a chance de uma vida melhor. Henrique ainda voltou sem tanta vontade de treinar, mas se destacou e entrou para a equipe de alto rendimento.
Sob o aviso de Diego Ribeiro que aquela era a última chance, Henrique passou a “levar o taekwondo mais a sério”, segundo suas palavras. Aos 14 anos, participou de seu primeiro campeonato a nível nacional e foi campeão. Logo começou a receber apoio financeiro, que fazia a diferença em sua realidade humilde. “O taekwondo chegou na minha vida para mudar muita coisa. Eu morava em uma parte mais humilde aqui do bairro. Hoje tenho condições de morar num lugar melhor, numa casa melhor. Graças a Deus o taekwondo vem me proporcionando coisas que eu nunca imaginei”, salienta Henrique.
Henrique demonstra uma grande consciência sobre suas origens. No início de 2023, o taekwondista postou um vídeo nas redes sociais mostrando a casa simples em que vivia e as dificuldades da vizinhança. Sua ideia era mostrar uma realidade que muitos atletas enfrentam, mas quase ninguém posta.
“Eu queria mostrar que, mesmo morando num lugar humilde, vindo de uma família humilde, se você tem um sonho, você é capaz, você consegue. Eu venho desse barco de família humilde, lugar humilde, pessoas humildes vivendo ao seu lado. Muitas vezes não tem bons exemplos para seguir, mas é manter a cabeça firme. Se você tem um sonho, se você se dedica, se você realmente quer aquilo, não importa o lugar que você mora, as pessoas que você convive. Tendo uma cabeça boa e um sonho, é fácil chegar onde você quiser”, explica
O sonho de Henrique? Dar uma vida melhor para sua mãe, Rosiane, e para o pai, Ari, ao lado dos cinco irmãos. A mudança para uma casa maior já foi uma grande realização do taekwondista. Mas ele também quer que a mãe “deixe de ser empregada e vire patroa”, depois de trabalhar desde pequena como diarista para sustentar os irmãos.
“O taekwondo jovem está vindo bem forte”
E há outros sonhos para Henrique buscar, um deles em Paris. “Desde pequeno eu venho sonhando. Parei pra pensar esses dias que teve na escolinha, pequenininho na creche, uma atividadezinha em que perguntaram a todos os alunos da sala qual era o sonho de cada um. E lembro que, no papelzinho, eu escrevi: ir para as Olimpíadas. Essa oportunidade que estou tendo agora, de tentar me classificar para Paris 2024, já é uma realização muito grande. E, se Deus quiser, eu me qualificando, será uma realização muito maior ainda. Uma palavra que define isso é realização mesmo. E gratidão”, recorda o taekwondista.
As lembranças Olímpicas mais marcantes de Henrique Marques incluem Iris Sing, um exemplo que saiu da mesma academia e do mesmo bairro. O taekwondista também cita sua admiração por Natália Falavigna e Henrique Precioso, não apenas pelas conquistas como atletas do taekwondo, mas também pelos rumos que tomaram dentro do esporte depois da carreira. Já uma inspiração é o coreano Lee Dae-hoon, dono de três ouros em Mundiais e de 12 ouros em Grand Prix, além de prata em Londres 2012 e bronze no Rio 2016.
Henrique, por sua vez, desponta dentro de uma nova geração no taekwondo brasileiro. E não está sozinho. A representante do taekwondo feminino no Pré-Olímpico das Américas será Maria Clara Pacheco, também de 20 anos, prata no Pan de Santiago e bronze no Mundial de 2023. Os dois jovens taekwondistas são companheiros desde a seleção júnior, em 2019, e deram passos importantes lado a lado. Agora, ambos têm Paris no horizonte.
“A gente conversou bastante, mas mais pessoalmente. A gente citou possibilidades de estar na Vila Olímpica, de como seria, se imaginando nas Olimpíadas. É uma honra estar do lado dela onde vamos disputar agora”, afirma Henrique. “É gratificante saber que eu estou nesse processo de renovação, junto com a Maria Clara. Tem outros atletas que também já estiveram comigo na seleção júnior, na seleção brasileira adulta agora. Creio que a juventude está vindo bem forte, o taekwondo jovem está vindo bem forte. A gente está chegando e conquistando esse lugar.”