Bia Ferreira: A garagem de casa levou a menina baiana às medalhas nos principais ringues do mundo

Por Leandro Stein
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Beatriz Ferreira com a medalha de prata em Tóquio 2020.
Foto por Buda Mendes

O boxe está na vida de Beatriz Ferreira desde as suas primeiras memórias. A pugilista sequer se lembra de quando aprendeu a “nobre arte”, tão menina que era nas primeiras experiências. O pai, conhecido como Sergipe, foi bicampeão brasileiro como profissional e se prontificou a ser também o melhor professor possível para Bia. A filha herdou o talento, que a levou a conquistas inéditas para o pugilismo brasileiro. Mais importante, herdou uma paixão pelo esporte que vai além das competições: está no praticar, no ensinar e no viver o boxe.

“A maior lição que aprendi com meu pai é que vale a pena a gente fazer o que a gente gosta. Quando a gente às vezes acha que tudo acontece com a gente, mas é um ensinamento. O esporte é feito de altos e baixos, e todo baixo te ensina alguma coisa pra você conseguir subir. Então, ele me ensinou a persistir. Na época, ele não teve tantas oportunidades, não pôde ser um atleta de seleção. Eu quis agarrar. Eu vi o tanto que ele fez pra ter os resultados que teve sem oportunidade nenhuma”, contou Bia, ao podcast Olympics.com, em outubro de 2023.

Bia Ferreira foi aluna de boxe, depois professora, e só então pugilista de alto rendimento. Chegou aos ringues internacionais pronta para triunfar. Sua carreira pode ter começado tarde, já depois dos 20 anos, mas ela garantiu uma série de conquistas de forma muito rápida. Bia é bicampeã mundial e bicampeã pan-americana, dando passos além do orgulhoso pai. Foi mais longe do que qualquer outra brasileira, com sua prata Olímpica em Tóquio 2020. E a fronteira final estará em Paris 2024, com o favoritismo da baiana na categoria até 60kg.

Rumo a Paris 2024 | O sistema Olímpico de classificação do boxe

Beatriz Ferreira comemora vitória nas quartas de final do boxe nos Jogos Pan-Americanos 2023

Foto por Alexandre Loureiro/COB

A garagem em que Bia foi mais uma aluna

A história de Beatriz Ferreira no boxe começa antes mesmo de seu nascimento. O esporte corre nas veias da soteropolitana, filha de Raimundo Ferreira, o Sergipe, um dos destaques do pugilismo nacional na virada dos anos 1990 para os anos 2000. O pai de Bia foi tricampeão baiano e bicampeão brasileiro. Fazia parte de uma geração pródiga da Bahia nos ringues, a ponto de treinar na famosa academia Champion e atuar como sparring de Acelino “Popó” Freitas durante cinco anos.

Sobre a aptidão da Bahia em revelar pugilistas, Bia comentou ao podcast do Olympics.com: “Reza lenda que é o carnaval, é o grande incentivador. Mas sabe o que acontece lá? Sempre que eu posso tocar nesse assunto, eu gosto de destacar. Boxe lá é como se fosse a educação física, sabe? Tem na escola. Então boxe, capoeira e teatro, eles começam desde cedo na escola. Eu acho isso fundamental. É por isso que saem grandes atores e grandes atletas de lá. Por conta dessa facilidade de trabalhar com a galera de base, galera que está criando sua formação. É bom ter uma atividade física.”

Nascido em Salvador apesar do apelido, Sergipe começou no boxe com apoio de um vizinho, que construiu uma academia improvisada no quintal de casa. Quando teve a oportunidade, anos depois, o pugilista fez o mesmo na sua garagem. O espaço servia para Sergipe treinar, mas também atraía os meninos de Nova Brasília, bairro na periferia soteropolitana. O bicampeão brasileiro conduzia um projeto social, que dava aulas gratuitas a crianças de sua região. E sua própria filha se tornou sua aluna ainda muito cedo.

“Meu pai era tipo um super-herói da rua: todo mundo queria ver ele treinar, queria treinar com ele. Então tinha bastante criança que gostava de assistir ao treino, eu era uma dessas”, rememorou Bia, ao Olympics.com. “Eu não lembro de ter aprendido boxe, eu já lembro de estar praticando. Alguns relances marcaram da minha infância.”

Bia Ferreira tinha quatro anos quando começou a receber as primeiras lições de Sergipe no boxe. A menina se empolgava com o barulho que vinha da garagem e queria participar. O pai logo incentivou e construiu equipamentos adaptados para a garota. Um tubo de água, por exemplo, virava um peso para Bia treinar. Sergipe também encomendou a um amigo, que fabricava luvas de boxe, um modelo menor que o usual. À medida que crescia, Bia se dedicava mais ao que no início parecia uma brincadeira de criança.

Outros caminhos também se apresentaram a Beatriz. A mãe, Rosivânia, fazia teatro e dança. Bia gostava de ser uma companheira de seus pais e experimentou tanto o teatro quanto a dança afro. De qualquer maneira, era o boxe com o pai que realmente prendia a menina. A futura pugilista acompanhava Sergipe em suas lutas profissionais. Costumava ser um talismã, considerando o respeitável cartel do pai: 42 vitórias em 45 lutas.

“Sempre tive um espelho no meu pai. Para mim, ele era invencível. Aconteceu de ele perder, mas graças a Deus eu não estava nesse dia, ele tinha lutado fora. Mas eu não acreditava que ele ia perder um dia. Eu via a dedicação dele, o sofrimento diário. Hoje eu entendo. Antes eu ficava assim, ‘por que ele não bebe água?’ Hoje, eu já sei o que ele sentia. Tenho ele como grande referência. Sempre que estou passando perrengues, vejo que não estou passando perrengue nenhum perto do que ele passou”, apontou Bia, ao podcast do Olympics.com.

Sergipe, além de vencedor, também era um bom professor. Um de seus pupilos é Pedro Lima, campeão do boxe nos Jogos Pan-Americanos de 2007 - o primeiro ouro do Brasil na modalidade desde o Pan de 1963. O jovem recebeu suas primeiras aulas de Sergipe na garagem em Nova Brasília, foi indicado para a academia Champion e chegou à seleção brasileira. A melhor aluna de Sergipe, todavia, seria mesmo Bia Ferreira.

Beatriz Ferreira, do Brasil

Foto por © Wander Roberto/COB

Professora de boxe antes de ser atleta Olímpica

Quando pendurou as luvas, Sergipe se mudou para Juiz de Fora, ao receber um convite para trabalhar como treinador de boxe numa academia local. Beatriz Ferreira o acompanhou na nova cidade e optou por viver com ele, diante da separação dos pais. A adolescente continuava nos ringues, embora não cogitasse ainda virar atleta de alto rendimento. Antes disso, Bia foi professora de boxe e começou a dar aulas quando tinha apenas 15 anos.

O interesse de Bia pela carreira no pugilismo veio poucos anos depois, quando precisava decidir se começaria a trabalhar ou se entraria em alguma faculdade. Pensou naquilo que mais gostava de fazer e logo ficou claro como o boxe a tornava mais feliz.

“Tinha alunos meus que já haviam lutado e eu nunca tinha passado por aquilo. E aí eu me desafiei. Eu falei: ‘Por que não? Todo mundo fala que eu faço bem isso aqui. Então eu vou acreditar’. Foi quando eu resolvi. Foi até um pouquinho tarde, com 23 anos, que eu decidi ser uma atleta de alto rendimento. Já sabia que ‘estava tarde’, mas eu falei: ‘Vou aproveitar todas as oportunidades que vierem.’ E eu estou aproveitando todas as oportunidades que estão aparecendo. Eu tardei, mas não falhei!”, contou Bia, em entrevista à revista Capricho, em junho de 2023.

O início da carreira de Beatriz teve seus percalços. A baiana ganhou sua primeira luta num campeonato nacional em 2014. Porém, foi desclassificada: Bia já tinha participado de eventos de muay thai em Juiz de Fora, o que a AIBA (Associação Internacional de Boxe) proibia. Entre a espera e a punição, a jovem ficou suspensa por dois anos. Segundo suas próprias palavras, se antes ela lutava boxe pelo gosto e pelo pai, o gancho provocou Bia a “pensar grande”.

“Eu me vi perdida. Não sabia o que faria. Logo quando achava que tinha encontrado um caminho para minha vida, acontece isso. Mas pensei com calma que não deveria desistir. Minha família nunca teve dinheiro, mas me ajudou no que pôde. E eu trabalhei. Dei aulas de boxe, tomava conta de crianças e ia desenrolando. Hoje, felizmente, não preciso disso e me dedico 100% ao boxe. Disputei torneios menores e fiz tudo para poder voltar. Que bom que não desisti!”, relembrou Bia, em entrevista ao diário Lance!, em julho de 2019.

Beatriz Ferreira ainda participou de torneios que não eram organizados pela AIBA, como os Jogos Abertos do Interior. Também aproveitou o tempo para baixar duas categorias, de 69 kg para 60 kg. Contudo, teve que esperar pelas grandes competições.

Assim, outras experiências paralelas foram valiosas a Bia Ferreira. Em 2016, ela foi escolhida para o projeto Vivência Olímpica, no qual 20 promessas brasileiras de diferentes modalidades puderam conviver com os atletas do país nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Bia também foi sparring de Adriana Araújo, outra filha do boxe baiano, que, em Londres 2012, tinha conquistado o bronze - a primeira medalha feminina da modalidade para o Brasil.

Para Bia, a oportunidade de conviver com atletas quebrou seu nervosismo e deu uma visão de dentro do ambiente Olímpico. “Virou a chavinha”, como ela mesma relataria, para voltar mais motivada aos seus treinamentos. Em 2017, quando Adriana Araújo se tornou profissional, Bia foi convocada para a seleção brasileira. Tóquio 2020 se tornava uma ambição. Uma enxurrada de medalhas começou a surgir: Bia se tornou campeã paulista, brasileira e sul-americana.

Já no Campeonato Mundial, Bia Ferreira precisou dar a volta por cima. A derrota precoce em 2018 serviu como lição, para a pugilista retornar mais forte na edição seguinte. Em 2019, por fim, a filha de Sergipe e Rosivânia se tornou campeã mundial. Foi eleita também a melhor atleta do campeonato. E o 2019 vitorioso permitiu que Bia buscasse o primeiro ouro do Brasil no boxe feminino em Jogos Pan-Americanos - também o primeiro ouro do pugilismo brasileiro no Pan desde aquele de Pedro Lima em 2007. A coroação definitiva veio com o Prêmio Brasil Olímpico de 2019 entre mulheres de todas as modalidades.

"Eu escolhi o melhor emprego que eu poderia ter escolhido. Eu me divirto. Não é sacrifício nenhum treinar, quando muitas pessoas acham que é sacrifício ir para a academia. A gente tem que abrir mão de muita coisa, mas é de boa. Eu criei uma meta. Quando eu consigo realizar minha meta, eu penso que valeu muito mais a pena estar vivendo isso. Então não tem sacrifício, eu escolhi e fiz tudo certo até agora”, disse Bia, em entrevista à TV NSports, em julho de 2021.

Os grandes passos do pugilismo feminino no Brasil

A importância de Beatriz Ferreira para o esporte brasileiro vai além de seus resultados. A pugilista deu uma inegável contribuição para a ampliação do boxe feminino no Brasil. Quando Bia chegou à seleção, em 2017, apenas duas mulheres faziam parte da equipe - eram três categorias disponíveis. Ficavam num quarto nos fundos da casa onde viviam os representantes do boxe masculino.

“Vi que o boxe feminino estava um pouco para trás, não tinha tanto essa oportunidade. Acho que foi uma parte até que me desafiou, eu vi a possibilidade daquilo dar um levante. As meninas já tinham começado a ter um destaque na mídia, mais competições, mais verba”, afirmou Bia, ao Olympics.com. “Eu gosto muito de desafios e me vi naquela de: por que não tentar, por que não continuar, não deixar o trabalho das meninas morrer?”

As vitórias evidenciavam a capacidade das pugilistas do Brasil. Bia Ferreira também pedia mais espaço a outras mulheres. Nos anos seguintes, a equipe brasileira feminina se ampliou. O Brasil passou a ser representado pelo time completo nas principais competições, com uma estrutura própria, sem depender mais do masculino. Bia naturalmente servia como principal expoente.

A maior prova do sucesso do boxe feminino no Brasil veio nos Jogos Pan-Americanos de 2023. Todas as seis representantes do país conquistaram medalhas - com quatro ouros, uma prata e um bronze. O Brasil registrou seu melhor resultado no pugilismo na história do Pan. Todas as medalhas douradas foram das mulheres. Bia Ferreira estava entre elas e se sagrou bicampeã continental.

“Entrei no boxe uma menina, hoje sou uma mulher. Amadureci muito e tenho orgulho de quem me tornei. Sinto que tenho muito a ensinar e desejo dar oportunidade às meninas que estão vindo aí, quero que elas achem as coisas mais fáceis”, disse Bia, à revista Gama, em outubro de 2020.

Beatriz Ferreira, de azul, tenta golpe na final do boxe nos Jogos Olímpicos Tóquio 2020.

Foto por Julian Finney/Getty Images

O sonho Olímpico de Bia e outras ambições

Paris 2024 marca a volta de Bia Ferreira aos Jogos Olímpicos. A baiana espera subir um degrau a mais no pódio, depois de fazer uma campanha bastante especial em Tóquio 2020. Durante a pandemia, mais uma vez, a história familiar fez a diferença para Bia: com o mundo todo precisando respeitar as recomendações de isolamento, a academia montada pelo pai dentro de casa permitiu que a pugilista seguisse em forma durante os meses anteriores aos Jogos Olímpicos, enquanto tantos não puderam treinar.

“Claro que não estou treinando como gostaria, com a minha equipe, mas estou tentando fazer da melhor forma. Tenho a sorte de ter um pai treinador, e não está moleza. Montamos uma mini academia aqui em casa. Temos que ficar positivos porque Tóquio está logo ali”, afirmou Bia Ferreira, em abril de 2020, ao site do COB.

Bia Ferreira teve um excelente desempenho em Tóquio 2020. Ganhou todas as suas lutas por 5 a 0 na caminhada até a semifinal. Quando o bronze já estava garantido, Sergipe tatuou na panturrilha a logo dos Jogos Olímpicos para homenagear a filha, cumprindo uma promessa feita antes da viagem de Bia para o Japão.

Somente a final em Tóquio 2020 não guardou o resultado sonhado por Beatriz Ferreira, com a derrota diante da irlandesa Kellie Harrington. A baiana ainda questionou a pontuação dada pelos juízes nos rounds, mas sua prata não deixava de ser valiosíssima. Era a segunda pugilista brasileira a subir no pódio do boxe feminino, repetindo o feito de Adriana Araújo, sua antiga companheira de treinos.

De Tóquio 2020, ficaram outros tesouros: as novas vivências. “Um atleta olímpico tem que viver os Jogos Olímpicos, tem que viver aquilo ali, porque é pra sempre. Eu me lembro de cada detalhe da Vila, do vestiário, da gente indo...Tóquio é muito bonita, a cultura deles é muito diferente da nossa. Então eu tentei aproveitar ao máximo, tentei conhecer vários atletas, tive a oportunidade de conhecer muitos atletas do Brasil, que a gente mal se falava por rede social”, contou Bia, ao Olympics.com. “É um momento que todo atleta pede, né? Tem momentos ruins, mas essa parte boa é surreal.”

Bia Ferreira quer viver tudo isso de novo. A pugilista mergulhou intensamente no novo ciclo Olímpico, e com novas frentes. Diante da recente permissão da AIBA, a brasileira pôde iniciar uma carreira híbrida entre o boxe Olímpico e o profissional. Sua estreia como profissional aconteceu em 2022 e Bia acumula vitórias, entre lutas realizadas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Em abril, ela venceu a argentina Yanina Lescano e conquistou seu primeiro cinturão na categoria peso-leve.

Com as carreiras paralelas, Bia precisa se adaptar aos diferentes objetivos do boxe profissional e do Olímpico. "É o mesmo esporte, mas é muito diferente. No Olímpico, a gente não fica parado, não tem isso de querer mandar com muita potência os golpes. É consequência, que a gente fala, quando acontece. No profissional, é diferente. A gente treina muito focado nessa potência. Não tão rápido, com tanta explosão, mas com muita força", explicou Bia, ao canal do Time Brasil, em janeiro.

E se o futuro profissional de Bia Ferreira é promissor, ela segue no topo do boxe Olímpico. A soteropolitana atravessou um ano dourado em 2023. Ganhou, além do Pan, também seu segundo título no Campeonato Mundial. Com a vaga Olímpica garantida, Bia virou a adversária a ser batida na categoria até 60kg. Paris 2024 deve marcar sua despedida dos ringues Olímpicos, para se dedicar somente à carreira profissional.

O ouro Olímpico é um dos objetivos de Bia Ferreira. Unificar cinturões no boxe profissional também pinta entre seus sonhos. Seu horizonte, no entanto, é bem mais amplo. A pugilista ambiciona vitórias maiores às mulheres de sua modalidade. Quer ver mais categorias no feminino, igualdades em relação aos homens e uma cobertura maior da mídia.

“Infelizmente, a gente ainda tem isso de que boxe é coisa de menino, mas a gente já mostrou que não é. As meninas também levam jeito e não muda nada, as meninas aqui também sabem bater. E está dando super certo isso”, comentou Bia, ao podcast do Olympics.com. “Fico muito contente de ter feito parte disso, de estar fazendo parte disso.”