Yasmim Soares, uma vida abrindo caminhos para brilhar em palco Olímpico do rugby sevens

Uma das suas funções no jogo é criar espaços, algo que fez desde cedo para um dia estar presente nos Jogos. Para se manter no esporte, brasileira vendeu balas em ônibus e foi agente de trânsito. Hoje, realiza sonho: 'Você perde, você ganha, mas sempre cresce.'

Yasmim Soares (7) runs with the ball at Paris 2024
(2024 Getty Images)

Brasil contra Fiji, torneio feminino de rugby sevens em Paris 2024, jogo que dava acesso à disputa pelo nono lugar. Faltavam poucos segundos para zerar o cronômetro. As brasileiras perdiam por um ponto, mas tinham a posse e procuravam manter a bola. As condições não eram ideais. Estavam pressionadas pelas fijianas, a menos de um metro da linha do in-goal - equivalente à linha de fundo.

No rugby, as chances de sair dessa situação são praticamente nulas.

“Situação de muito perigo, o Brasil tem 100 metros pela frente daqui”, narrava Hans Frauenlob, na transmissão da OCS (Olympic Channel Services).

As Yaras (apelido da seleção brasileira feminina de rugby) estavam atrás por 22 a 21. Caíam diante das rivais e parecia não haver nada que pudesse resolver.

Só restava – tentar - encontrar alternativas.

Soa a sirene. Tempo regulamentar esgotado. O Brasil não podia deixar a bola morrer, senão a vitória era de Fiji. Em situação de pressão, era preciso manter a bola viva.

Yasmim Soares, camisa sete, no canto da linha do in-goal com a lateral, era a última e única alternativa de manter essa bola viva. Recebeu o passe. Estava marcada e essa marcação tinha cobertura.

Lembram-se do Denílson cercado por quatro turcos na Copa do Mundo FIFA 2002? Pior.

No entanto, continuou Frauenlob: “Soares... faz a finta!”

Em um jogo de pernas extremamente rápido, sua marcadora acabou indo para o outro lado. Com ela, também foram quem lhe dava apoio. O caminho estava livre para Yasmim.

“Soares... campo abaixo... agora se trata apenas de correr, que Yasmim Soares vai vencer, Soares, atrás dos postes e ela marca para o Brasil!” – exclamou Frauenlob para um planeta inteiro.

Um try de aproximadamente 95 metros, diante de 80.000 torcedores, no principal palco do esporte: os Jogos Olímpicos, em pleno Stade de France.

Um lance que espelha a vida de Yasmim. Esta carioca de 25 anos sempre teve que fintar as adversidades que encontrou, e correr sem olhar para trás em busca dos seus sonhos.

Afinal, assim como no rugby, no contexto em que recebeu aquele passe para o try, suas chances de alcançá-los um dia foram bem pequenas.

Uma história de fintar adversidades e agarrar oportunidades, ser ajudada mas também aprender a fazer por si. Acima de tudo, sobre querer vencer.

Uma história que Yasmim compartilhou em entrevista para o Olympics.com.

De vender balas em ônibus a agente de trânsito para se manter no esporte

Yasmim teve uma infância bastante rica em brincadeiras com as demais crianças pelas praças e ruas da Cidade de Deus, bairro do Rio de Janeiro com críticos indicadores sociais. Em outras palavras, faltam oportunidades para os jovens que por lá vivem.

Um reduto dessas oportunidades era a Escola Municipal Pedro Aleixo. Yasmim adorava as aulas e Educação Física. Lá conheceu o handebol, aos 12 anos. Aos 14, foi apresentada ao atletismo. Ia bem nas provas de 75m e 100m, mas gostava mesmo do heptatlo. “Eu era muito testada e me saía bem em tudo. Gostava do heptatlo porque você tinha que manter um alto nível e, no fim, mandar bem em uma prova de 800 metros. Gosto dos desafios”, recordou Yasmim.

Conciliou por muitos anos os dois esportes e fez parte da seleção do Rio de Janeiro nos Jogos Estudantis Brasileiros.

Para se sustentar, era vendedora de uma loja de roupas em Cidade de Deus. Para complementar a renda, vendia balas e empadas nas lotadas linhas de ônibus que circulavam entre os bairros da Taquara e Freguesia. Quando chegava em casa, sua avó Aurileia, que a criou, comprava aquilo que a neta não tinha vendido.

“O mais engraçado é que tinha época que a geladeira só tinha doces, porque a minha avó comprava para eu não ficar andando muito pela rua. Era um estímulo: ‘eu vou comprar esse aqui, você vai lá e tenta vender’, mas sempre eu voltava e ela acabava comprando o que sobrava”, revelou.

Antes de qualquer coisa, Yasmim dava o primeiro passo. Fazia à maneira que estava ao alcance e ia atrás em busca de um sonho, Olímpico. Foi o que a manteve em pé.

A paixão pelos esportes sempre fez com que acompanhasse os Jogos Olímpicos pela televisão. Desde pequena, sempre manteve a convicção de que estar nos Jogos era para ela.

“Vi minha avó torcendo em Tóquio 2020 para a [judoca] Rafaela Silva, também da Cidade de Deus e eu pensava: ‘nossa, será que um dia eu vou conseguir estar lá? Será que um dia alguém vai gritar por mim também? Sabe aquela coisa de você sonhar e você querer vivenciar aquilo?”

Naquela ocasião, ela já tinha conhecido o esporte que mudaria a sua vida.

No entanto, já tinha abandonado quadras e as pistas para poder ajudar com as despesas da casa: “Chegou em uma situação que não dava mais, não dava mais para tirar de onde não tinha.”

Afastou-se do esporte e tornou-se agente de trânsito.

Novo emprego e novo esporte: oportunidades de vida nova

“Havia um curso de operação viária. Resolvi fazer e me destaquei, a única a ser contemplada com um emprego registrado, como agente de trânsito”, contou Yasmim.

Continuava a fazer por si. Era uma rotina exaustiva. Orientava o tráfego na região da igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. Entrava às 14:00 e saía às 22:00. Estava de volta em casa só perto da meia-noite.

Emprego novo, rotina recente. Além disso, dava os primeiros passes de um esporte que deu novos rumos à sua vida: “Certo dia um amigo me disse: ‘Yasmim, conheci um esporte que é a sua cara, tem um pouco de handebol e do atletismo’, e combinamos de irmos juntos.”

Curiosa, compareceu ao treino para ver do que se tratava. O amigo faltou do compromisso. Yasmim estava sozinha, mas se aproximou. “Eu vi a galera se abraçando e eu falei: ‘meu Deus, o que será que é isso?’”

Era o rugby e era um scrum que estavam treinando.

Yasmim treinou. Ao final, o treinador, Marcel Santos, a procurou. “Ele falou: ‘Volta amanhã. Você foi muito bem, então volta amanhã.’ Voltei e nunca mais eu parei”, recordou.

“Falaram assim: ‘não deixa ninguém te encostar e quando você estiver com a bola, não deixa ninguém te pegar.’ E eu conseguia fugir das pessoas”, revelou a carioca, aos risos.

Ao ser perguntada o porquê de não ter parado com o rugby, Yasmim foi convicta: “A galera realmente te abraça e te faz querer estar ali. É o respeito, são os valores. E aí, de certa forma, também eu comecei a gostar e a competir de verdade.”

Então, voltamos às ruas, enquanto agente de trânsito.

“Teve um dia em que um motorista queria fazer uma conversão proibida, não aceitou minha orientação e me disse muitos palavrões, fiquei muito desconfortável”, lembrou-se. Ali lhe faltaram com respeito e solidariedade, dois valores que o rugby transmitia a ela diariamente. “Não queria ficar no meio da rua e exposta a diversas situações. Precisava sair dali.”

Em seis meses, estava mentalmente esgotada. Tinha apenas 22 anos de idade. Seu refúgio era a bola oval. Pelo time do El-Shaddai, já disputava torneios e despertava a atenção de clubes e treinadores, chegando à seleção fluminense. Um refúgio que passou a ser esperança.

A antes de sair trabalhar, Yasmim costumava orar. Certa ocasião, numa oração, partilhou o seu sonho com o esporte. Depois, pegou suas coisas e partiu para mais uma jornada. No caminho, encontrou por acaso o seu antigo treinador do atletismo, Felipe França, que lhe parou e disse: “Ele foi como um anjo. Do nada me falou: ‘Tem uma coisa muito boa pra você, tá? Tem uma coisa muito boa vindo para você’.”

No mesmo dia, Yasmim recebeu convite para ser atleta profissional do Melina, em Mato Grosso, a 2000 quilômetros de casa. Sem hesitar, aceitou.

“Era o que podia mudar a minha vida”, argumentou.

Talento reconhecido, Yasmim passa a viver do rugby

Pelo Melina tinha registro profissional como atleta. “Fazia uma coisa que gostava muito e também ajudava minha família.”

Dentro de campo, tudo ia bem. Sua velocidade fazia com que jogasse de ponta. Estreou pelas Yaras (apelido da seleção brasileira feminina) na equipe de XV, fazendo um try de campo inteiro logo em seu primeiro jogo, contra a Colômbia, em novembro de 2022 - derrota por 25 a 17.

O desempenho que fez com que fosse convidada para ser parte do núcleo de atletas das seleções brasileiras, em São Paulo. Demorou para aceitar, mas, dois anos e meio depois morando em Mato Grosso, mudou-se para a capital paulista.

Passou a ter o seu nome relacionado nas convocações das Yaras pelos torneios mundo afora, nas duas variantes – sevens e XV. Fora de campo, retomou os estudos, outrora interrompidos para poder se firmar no esporte e ajudar a família. Ademais, passou a aprender o inglês.

“Foi tudo vontade minha. Sempre me cobrei em terminar os estudos, era algo que me incomodava. Mas cada um tem o seu tempo para tudo, nunca me comparei com os outros. Estou em busca de ser uma atleta melhor e um ser humano melhor”, explicou.

Está prestes a terminar o segundo grau e poderá obter bolsa para ingressar em uma universidade. “Quero estudar psicologia. É uma área muito necessária no alto rendimento. Sou muito ligada à minha psicóloga. Ela me ajuda muito.”

“Serei a primeira pessoa da minha família com curso superior”, enfatizou.

Pelo time de sevens, obteve o bronze nos Jogos Pan-Americanos 2023 e, meses depois, teve sua convocação confirmada para Paris 2024. “Foi a realização de um sonho, uma coisa magnífica. E um pouco de pressão, né? Representar o Brasil no principal palco do esporte”, disse Yasmim.

Yasmim: ‘Consigo ser uma luz no fim do túnel’

A trajetória de Yasmim serve de exemplo para milhares de jovens do Brasil e do mundo, distantes do acesso às oportunidades.

“Acho que isso não tem preço. Você consegue inspirar novas histórias, novos caminhos e ser aquela luz no fim do túnel”, refletiu. “Mas é uma responsabilidade boa. Deus não dá pra gente um fardo que a gente não pode carregar”, completou.

Yasmim abriu caminhos durante toda a sua vida. Os seus próprios. Por analogia, no rugby ela tem essa mesma função, de criar espaços para que sejam aproveitados. Um princípio basilar do jogo.

Foi o que ela fez diante de 80000 pessoas no Stade de France, que gritavam por ela (assim como um dia imaginou) durante os Jogos Olímpicos Paris 2024, em lance que ela assim descreveu:

“Foi uma jogada de muito coração. A bola passou embaixo da perna da Leila e alguém falou: ‘passa para a Yas! Foi quando eu ouvi a sirene... meu Deus! Qualquer erro a gente perde. Pisei para dentro, a fijiana foi no meu jogo, ela saiu e abriu espaço. Era a chance, que eu corri com toda a minha força.”

Em uma metáfora da sua vida, uma finta que abriu o espaço para a oportunidade. Ao lado, as Yaras colegas para lhe darem apoio, como das vezes na vida em que precisou de ajuda.

“O rugby mudou a minha vida em todos os sentidos. Me moldou, me lapidou. Me deu acesso àquilo que talvez trabalhando em outros empregos seria mais difícil conseguir”, disse Yasmim, que assim concluiu: “Mas não gosto de olhar para trás e me lamentar. Gosto de pegar os detalhes legais e dizer: ‘aprendi com isso’. Você perde, você ganha, mas sempre cresce.”

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