Quando Lindsay Mariano vai ao supermercado, as pessoas a abordam querendo saber os próximos jogos da seleção brasileira. Michel Assunção, por sua vez, não consegue sair à rua sem ser cumprimentado como um ídolo. Não, não estamos falando de estrelas do futebol, vôlei ou ginástica, mas de jogadores de críquete do Brasil.
Ambos são atletas da seleção brasileira adulta e naturais de Poços de Caldas, cidade interiorana localizada ao sul de Minas Gerais. O município abriga atualmente o maior projeto social do país na modalidade e se transformou no principal polo de desenvolvimento do críquete brasileiro, sendo a base das equipes nacionais.
É lá que o sonho Olímpico do Brasil no esporte começa a ganhar corpo. Após ter apenas duas seleções participantes na segunda edição dos Jogos Olímpicos da era moderna em Paris 1900, o críquete será disputado em LA28. Desta vez com a categoria T20, uma versão mais curta da modalidade.
“A gente já está falando nos projetos que o críquete virou esporte Olímpico e muitas crianças estão bem empolgadas junto com a gente de, no futuro, poderem ir aos Jogos Olímpicos também”, sintetizou Michel em entrevista ao Olympics.com.
Empolgação que se reflete no campo em Poços de Caldas. A cidade mineira acompanhou os times sub-15 e sub-19 do Brasil conquistarem recentemente o Sul-Americano das duas faixas etárias. Além disso, em 2020 se transformou no primeiro país do mundo a profissionalizar a seleção feminina antes da masculina.
Hoje, todas as jogadoras recebem salários como atletas de críquete no Brasil e treinam na cidade – algumas, inclusive, já acumulam experiências em ligas no exterior. Por fim, é em Poços de Caldas que está o Centro de Treinamento da modalidade, reinaugurado em outubro para atender tanto os projetos sociais quanto os treinos da seleção brasileira.
“[Estar nos Jogos Olímpicos] dá mais visibilidade, mais aceitação e aí mais pessoas vão querer jogar, praticar e conhecer. Vai ser bom aqui em Poços e fora também, porque a gente já está indo a outras cidades e é mais fácil as pessoas entenderem e começarem a jogar”, explicou Lindsay.
SAIBA MAIS | Críquete: tudo o que você precisa saber
‘Acaso’ transformou Poços de Caldas na capital do críquete brasileiro
Poços de Caldas é uma típica cidade mineira. Famosa pelas águas termais, os cristais e por estar em uma caldeira vulcânica extinta, a cidade combina o clima pacato do interior com sua importância econômica e social na região. Agora, pode incluir mais uma alcunha: capital do críquete no Brasil.
O esporte, porém, entrou na vida poços-caldense ao acaso. O britânico Matt Featherstone, ex-jogador profissional, casou-se com uma brasileira e mudou-se para a cidade mineira no início dos anos 2000. Hoje ele é presidente da Confederação Brasileira de Críquete, mas na época já era entusiasta e se envolvia na associação que deu origem à entidade.
Uma de suas iniciativas foi criar em Poços de Caldas o projeto Cricket Brasil em 2011, que havia sido lançado em Brasília dois anos antes. A ideia era ensinar o esporte às crianças e adolescentes, sobretudo de baixa renda. A diferença é que na cidade mineira a aceitação foi imediata, tanto pelas crianças quanto pelas autoridades e centros comunitários.
Após 13 anos, a cidade abriga 80 programas de desenvolvimento em diferentes locais e o esporte está no programa curricular das 52 escolas públicas locais. Com isso, atende mais de 5.700 crianças e adolescentes no município, o que corresponde a 15,6% da população abaixo de 19 anos, cruzando com dados do Censo 2022.
Tamanho sucesso fez o programa se estender a outras cidades da região. Em Minas Gerais, há polos em Botelhos, Palmeiral e Caldas. Em São Paulo, chegou em Aguaí, Águas da Prata, São João da Boa Vista e Mococa. Além de já estar em Santa Luz, na Bahia, e nas capitais São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ). Juntos, todos os programas atendem mais de 9.000 jovens.
ENTENDA | Sessão do COI aprova proposta de LA28 para cinco esportes adicionais
Michel Assunção queria ser goleiro; hoje sonha com Jogos Olímpicos no críquete
O projeto em Poços de Caldas tinha apenas três anos quando Michel Assunção, hoje aos 24 anos, teve o primeiro contato com o críquete. Na época, aos 14, ele jogava futebol em um centro comunitário e sonhava em ser goleiro quando o novo esporte chegou por lá.
“A sensação era ‘que esporte é esse’? Nunca tinha ouvido falar. Estava chegando lá e a gente só queria jogar futebol”, diverte-se.
Convidado a experimentar a modalidade, a paixão foi imediata. Não só por lembrar o jogo de taco (ou bets), muito praticado por crianças brasileiras, mas pelos valores que o críquete ensina e, principalmente, pela possibilidade de alcançar coisas que o futebol dificilmente proporcionaria a ele.
Do primeiro contato ele e os colegas já formaram uma equipe no Centro Bem Viver, onde praticava o futebol, e no mesmo ano já recebeu sua primeira convocação: integrar a seleção brasileira sub-14 que disputaria o Sul-Americano daquele ano na Argentina. Foi sua primeira viagem internacional.
“Aí eu vi que no futebol ia ser mais difícil”, explicou, para um pouco de tristeza do avô, que também foi goleiro e imaginava que o neto poderia seguir seus passos.
Porém o críquete em Poços de Caldas ofereceu mais oportunidades a Michel. Como atleta ele passou por todas as seleções de base e integra o time adulto do país desde 2022. A modalidade também lhe concedeu uma bolsa de estudos para cursar educação física e se tornar um dos monitores do projeto (leia mais abaixo). Foi o primeiro da família a cursar graduação. Hoje ele é atleta e professor contratado de críquete na cidade.
“Sem o críquete, eu acho que não conseguiria pensar em outra coisa para fazer”, resumiu. Seu principal sonho, agora, é ajudar a colocar o Brasil na modalidade em LA28. “Espero que seja uma coisa muito histórica para todo mundo aqui do Brasil e que dê certo de entrar o time feminino e masculino”, concluiu.
Críquete brasileiro lança programa voltado para formação de ‘professores’
O projeto de críquete em Poços de Caldas poderia ser ainda maior se não fosse a própria limitação de pessoal da modalidade. Em outras palavras: há interessados demais para poucos monitores disponíveis. Isso fez com que o projeto lançasse um segundo programa, voltado para adolescentes dispostos a seguir carreira no esporte.
Batizado de Camisas Pretas, a entidade seleciona jovens que participam dos programas sociais e que tenham perfil de liderança para receberem bolsas de estudo em Educação Física. Em troca, eles se tornam monitores dos programas e, quando formados, são contratados oficialmente.
Para financiar toda essa estrutura, o Cricket Brasil dispõe de diferentes recursos. O mais importante deles é o repasse do Conselho Internacional de Críquete (ICC, em inglês) a todos os países filiados. Quanto mais praticantes e resultados internacionais, maior a fatia. Neste ciclo, a entidade internacional disponibilizou US$ 600 milhões a todos os filiados – e o Brasil teve direito a uma pequena parte.
Além disso, a confederação conta com patrocinadores oficiais e parceiros que oferecem serviços em trocas de permutas. Há também projetos de incentivo fiscal (federal e estadual), que possibilitam a execução dos programas.
ENTENDA | Flag Football do Brasil: bem maior do que você imagina
Lindsay Mariano tentou ginástica e pegou ‘gosto’ pelo críquete
Hoje aos 22 anos, Lindsay Mariano tinha 13 quando viu o críquete pela primeira vez. Ela participava de um projeto social em seu bairro e entre as atividades culturais e esportivas, passou a ter a modalidade também. “Comecei a jogar porque parecia bets”, admite.
As primeiras experiências, contudo, não foram animadoras. “Não gostei muito porque eu não era muito boa e errava bastante”. Até então, ela só tinha se encantado com a ginástica, que praticava desde pequena, mas teve que parar após sua professora se mudar de cidade.
O tempo, contudo, apagou as primeiras frustrações. Conforme ia jogando, Lindsay melhorava na modalidade. Até que ouviu jovens que já jogavam pela seleção falando de arrumar mala para viagens internacionais. Uma oportunidade que ela também gostaria de ter no futuro.
“A partir desse momento eu falei ‘quero viajar para fora também’”, afirma.
Passou a se dedicar com mais afinco nos treinos e os resultados começaram a aparecer. Se no início a família achava que era tudo uma brincadeira, a partir de 2020, quando ela se tornou uma atleta profissional, a visão mudou. Em 2022, após concluir a graduação com apoio do programa (também única da família) e se tornar professora de críquete, deu mais um passo além - e hoje sonha com a chance de jogar no exterior.
“Não consigo [pensar minha vida sem o críquete]. Nem se eu não tivesse conhecido e nem se eu parasse agora. Não sei o que eu faria”, conclui.