Maria Mutola faz 50: a inspiradora história da campeã Olímpica de Moçambique e ex-treinadora de Caster Semenya

Em Sydney 2000, ela deu ao país africano de língua portuguesa a primeira medalha de ouro em Jogos Olímpicos. Saiba mais sobre a "Rainha dos 800 metros", que completa 50 anos de idade nesta quinta-feira, 27 de outubro.

8 minPor Virgilio Franceschi Neto
Maria Mutola, de Moçambique, comemora o ouro nos 800m dos Jogos Olímpicos Sydney 2000.
(Henri Szwarc/Bongarts/Getty Images)

Moçambique, terra de Maria de Lurdes Mutola. País da costa oriental da África, território português por séculos até 1975. Onde nasceu também Eusébio, um dos maiores atletas de sempre no mundo do futebol, primeiro esporte de milhares de crianças moçambicanas, meninos e meninas.

Não foi diferente para Maria Mutola, com seus primeiros chutes em um recém-independente Moçambique.

Brincava em Chamanculo, onde nasceu, humilde periferia de Maputo, uma capital que tentava reerguer-se após os conflitos pela soberania política e em meio à guerra civil, que só teria fim no início dos anos 1990.

Não muito tempo depois de estabelecida a paz, a jovem Mutola deu a primeira medalha Olímpica para o - também jovem - país. Mas não no futebol, e sim nos 800 metros do atletismo, em Atlanta 1996.

Quatro anos mais tarde, o momento máximo. Ouro na mesma prova, em Sydney 2000, o primeiro de Moçambique em Jogos.

Do futebol quando criança, às alcunhas para toda a vida de "Rainha dos 800 metros" e "Expresso de Maputo", o Olympics.com convida o leitor para conhecer sobre a carreira e a trajetória de Maria Mutola, que nesta quinta-feira completa 50 anos de idade.

O começo no futebol

Filha de Catarina, trabalhadora doméstica e de João, ferroviário, Mutola recorda-se da infância com o futebol em Chamanculo: "Tinha seis anos de idade e jogava com o meu irmão mais velho", disse em entrevista à emissora de rádio britânica BBC (British Broadcasting Corporation - corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido).

Destacou-se nas categorias de base, jogando com os meninos, até ter a sua inscrição na federação local ser contestada por um clube rival.

No entanto, tinha sido observada em uma partida pelo poeta local José Craveirinha, que viu potencial em Mutola para o atletismo. Seu filho, Stelio, havia competido no salto em distância em Moscou 1980 e acabou sendo o primeiro treinador da jovem.

No começo ela hesitou e imaginou que não serviria para outro esporte. Craveirinha então a convenceu de permanecer no atletismo, ao mostrar-lhe fitas e fotos de Los Angeles 1984.

O atletismo por acidente

Era o ano de 1988 e, aos 15 anos e mesmo com poucas oportunidades para treinamento, Mutola foi inscrita para representar Moçambique no Africano de Atletismo daquele ano, na Argélia.

"O atletismo apareceu por acidente", lembra-se em declaração à rádio BBC.

Um "acidente" que a deixou em segundo lugar nos 800m, em sua primeira prova internacional de sempre. Como consequência, obteve o índice para Seul 1988, semanas mais tarde.

Na República da Coreia classificou-se para a final. O sétimo lugar rendeu-lhe o diploma Olímpico e não faltaram convites de todo o mundo a fim de potencializar o talento da jovem moçambicana.

(Mike Powell/AllSport)

A mudança para os Estados Unidos

Em 1990 o Comitê Olímpico Internacional ofereceu a Mutola uma bolsa para treinar e estudar nos Estados Unidos, na capital do atletismo: Eugene, cidade do Oregon. "Não foi para Nova York, ou outro lugar conhecido. Eugene é longe e bem pequena, foi uma adaptação difícil", comentou a atleta para a rádio da BBC. "Foi um grande desafio para mim", completou.

Meses depois em telefonema para a família, disse, aos prantos, querer voltar para Maputo. "Liguei para a minha irmã a chorar, queria voltar e desistir, mas ela e meu pai me convenceram do contrário. Aceitei a situação e a partir daí tudo começou a mudar para melhor", recorda-se na mesma entrevista.

Em 1991, treinada por Margo Jennings, Mutola terminou em quarto lugar no Mundial, em Tóquio, uma participação que quase não aconteceu, pela falta de uniforme. Um traje de banho improvisado a permitiu competir. No ano seguinte, na segunda participação em Jogos, o quinto lugar em Barcelona.

O crescimento era espantoso e o futuro indicava um brilho ainda mais intenso.

Uma vez moçambicana, sempre moçambicana

No entanto, Maria Mutola perdia muito tempo nas Embaixadas e consulados a fim de solicitar vistos de entrada em seu passaporte, para competir nos mais diversos países.

Sua comissão técnica sugeriu mudança de nacionalidade para reduzir essa burocracia, que consumia tempo e paciência da atleta, que poderia ser empregada em mais treinos e preparação para torneios.

Considerou competir sob outra bandeira, mas seu pai, João, interveio. "Ele disse que se ganhasse uma medalha por outro país, seria apenas mais uma. Mas se a ganhasse por Moçambique, seria a primeira", falou Mutola em entrevista ao UOL.

O pai estava certo.

(Bongarts)

Anos 1990: dos Mundiais à medalha Olímpica

Foram em 1993 as duas primeiras grandes conquistas de Mutola, com os títulos mundiais nos 800m em Stuttgart, na Alemanha, e em pista coberta, em Toronto, no Canadá. Pela metade dos anos 1990, já havia somado dezenas de pódios e era a atleta a ser superada na meia distância.

Chegou à sua terceira participação em Jogos, em Atlanta 1996, como a número um do mundo e tudo corria bem. Favorita ao ouro, teve pneumonia a poucos dias dos Jogos. Recuperou-se em tempo de disputar a prova e foi à final dos 800m.

"Não respirava de maneira apropriada durante a prova. Era como se fosse uma maratona", recordou-se em declaração para a BBC.

Terminou em terceiro lugar, medalha de bronze, a primeira de Moçambique na história dos Jogos Olímpicos. "Fiz algo bastante especial", refletiu.

Sydney 2000: finalmente o ouro Olímpico

Mutola não deixaria a medalha de ouro escapar-lhe uma segunda vez. Decidiu preparar-se ao máximo para os Jogos na Austrália. Durante o ciclo, manteve os pódios dos Mundiais. Foi bronze em Atenas (1997) e prata em Sevilha (1999). Nos de pista coberta, o título em Paris (1997) e prata em Maebashi (1999). Nos Jogos da Comunidade Britânica, o título em Kuala Lumpur (1998).

Em Sydney, quando a prova começou, as coisas não saíram da maneira como a moçambicana esperava. A britânica Kelly Holmes havia ficado de fora do pódio quatro anos antes por centésimos, e não tinha nada a perder. Atacou bem no início da prova, pegando a africana de surpresa. Teve que tirar todas as forças para nos 100 metros finais ultrapassar Holmes.

"Era tudo ou nada. Precisava fazer aquilo. Pensei comigo: 'faltam 100 metros...larga tudo e dê a vida, pegue-me se for capaz'", disse para a BBC.

Com 1min56s15, Maria de Lurdes Mutola deu a primeira medalha de ouro Olímpica para Moçambique na história, a primeira de um país africano de língua portuguesa.

"Ser campeã Olímpica foi muito especial. Foi o primeiro ouro de Moçambique. O país todo estava assistindo. Sempre senti a torcida comigo. Me senti mais completa", falou Mutola em entrevista para a ESPN Brasil.

Uma carreira vitoriosa

Campeã Olímpica, Mutola tem duas medalhas em Jogos, com a de bronze de Atlanta 1996. É tricampeã do mundo nos 800m e sete vezes ouro no Mundial em pista coberta, o último conquistado em Moscou, em 2006. Foram também dois títulos nos Jogos da Comunidade Britânica, além de Kuala Lumpur em 1998, venceu em Manchester (2002).

Encerrou a carreira após os Jogos Beijing 2008, em sua sexta participação Olímpica, duas décadas depois da sua estreia, em Seul. Foi membro da Comissão de Atletas do Comitê Olímpico Internacional.

Depois do atletismo, o retorno ao futebol

Encerrada a carreira no atletismo, deixou os Estados Unidos, onde viveu por 17 anos e estabeleceu-se em Joanesburgo, na África do Sul.

Voltou ao futebol, esporte que tanto ama e jogou a liga local feminina sul-africana pelo Mamelodi Sundowns, por várias temporadas.

Além disso, representou a seleção de Moçambique nos Jogos Pan-Africanos de 2011, como capitã e marcando gols.

Treinadora de Caster Semenya

Em 2011 encontrou por acaso a atleta de meia distância sul-africana Caster Semenya, no aeroporto, enquanto aguardavam voos. Semanas depois daquela breve conversa, Semenya, fã de Mutola desde a infância, a convidou para ser sua treinadora e mentora.

No ano seguinte, Semenya obteve o pódio com a prata nos 800m de Londres 2012. Em 2015, ela acabou herdando o ouro, depois que a vencedora Mariya Savirova (Rússia) foi punida por doping.

A "Fundação Lurdes Mutola": oportunidade para a juventude de Moçambique

Mutola já era bastante conhecida no mundo do esporte e o título Olímpico em 2000 deu-lhe ainda mais projeção.

Em 2001, criou a "Fundação Lurdes Mutola", que oferece projetos educacionais, esportivos e culturais para milhares de jovens moçambicanos. Nos cinco primeiros anos da entidade, foram 30 atletas formados que competiram internacionalmente.

"Todas as crianças em Moçambique precisam ter um Craveirinha (em referência àquele que a descobriu para o atletismo) em sua vida. Quero que elas saibam que, assim como eu lá no começo percebi, a combinação de esporte e educação é a chave para o sucesso", colocou em matéria para a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura).

Para ela, a Fundação é uma maneira de transmitir tudo aquilo que ela recebeu. "É importante passar o que aprendi para os jovens moçambicanos. Não só no esporte e no atletismo, mostrar a luz e o caminho certo", assim comentou para a Rádio do Vaticano.

No manifesto de criação da sua Fundação, Mutola faz referência ao propósito de ajudar, como um dos pilares de algo ainda maior para o seu país, Moçambique: "O que chamamos sentimento patriótico nasce do apoio mútuo, de um cuidado baseado na ideia de que somos uma grande família abrigada sob a mesma bandeira.”

Como boa africana, ela põe em prática um velho provérbio do continente: "Aquele que aprende, ensina."

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