Felipe Perrone lidera a Espanha no polo aquático, mas vive a emoção do esporte como brasileiro
Disputar cinco edições dos Jogos Olímpicos é para poucos. Felipe Perrone alcançou tal honraria, mais uma em sua condecorada carreira. O veterano de 38 anos é recordista em participações no Campeonato Mundial, 12 no total, e conquistou praticamente tudo o que era possível no polo aquático. A exceção é a medalha Olímpica. Paris 2024 é uma chance real, diante do ótimo momento de sua seleção. Felipe, porém, não representa apenas a Espanha nas piscinas. O capitão da Fúria também traz sempre o Brasil à flor da pele.
Felipe Perrone, afinal, é nascido no Rio de Janeiro. Cresceu numa família de jogadores de polo aquático e iniciou sua carreira no Brasil. Contudo, também possuía origens catalãs por sua avó e recebeu a oportunidade de se projetar no esporte quando se mudou à Espanha, aos 17 anos. Felipe ainda voltou à seleção brasileira brevemente para realizar o sonho de disputar os Jogos Olímpicos em casa, capitão dos anfitriões na Rio 2016. Mas é na seleção espanhola que o carioca grava seu nome entre os melhores da história.
Eleito o melhor do mundo em 2022, Felipe Perrone segue levando seu lado brasileiro a cada partida. Em entrevista ao Olympics.com em junho, o capitão espanhol contou que a forma como vive o esporte é genuína de seu país natal: “Eu cresci no Brasil e tenho essa parte realmente de viver o esporte com mais emoção - que, às vezes, obviamente, tem que controlar. Eu acho que isso é uma característica do brasileiro. Quando jogo, tenho essa parte de mais intensidade, de viver aquilo ali.”
A vibração brasileira de Felipe Perrone se une à qualidade lapidada em duas décadas na Espanha. O carioca conquistou seu espaço pelo talento e contribui cada vez mais com sua liderança exemplar, mentor de uma geração que renova as conquistas do polo aquático espanhol. O Mundial 2022 representou o fim de uma espera de 21 anos pelo ouro. Já o Europeu 2024 garantiu um título inédito para o país. O momento contribui para que os espanhóis almejem uma volta ao pódio Olímpico pela primeira vez desde Atlanta 1996.
A mentalidade é dourada: “Tentamos ter um nível de exigência, no treinamento e no dia a dia, realmente de ouro. Buscamos a excelência. Obviamente, no esporte, você nunca sabe o que vai acontecer. Os outros times também buscam, nunca sabemos como vai acabar, mas o nosso dia a dia é para buscar o ouro. A gente é assim: se alguém visse um dos nossos treinos, parece que estamos jogando a final da Olimpíada todos os dias. Isso é um pouquinho o espírito que a gente tem, a cultura de treinamento e de trabalho.”
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Criado desde pequeno no polo aquático
Felipe Perrone chega a Paris 2024 numa fase especial, e não apenas pelo sucesso com a Espanha. À medida que se aproxima do final de sua carreira, o veterano também desfruta.
“Vai passando o tempo e a gente vai aprendendo a aproveitar, a desfrutar, a viver o esporte de uma maneira mais bonita. Quando era mais novo, eu ficava nervoso com muitas coisas. Hoje em dia, eu aproveito cada detalhe - até a ida para o treino, a volta do treino, o jogo, o cafézinho antes do jogo. Cada detalhe é legal. Além disso, vão se passando os anos, você nunca sabe quando vai acabar, então vai vivendo como se fosse o último. Isso faz com que tudo seja bastante especial.”
Para chegar à quinta edição dos Jogos Olímpicos, Felipe Perrone trilhou um longo caminho. O carioca estava ligado ao polo aquático antes mesmo de nascer. Seu pai, Ricardo, defendeu a seleção brasileira e deveria ter disputado Munique 1972, mas os dirigentes desistiram de última hora de enviar a equipe nacional. Já o irmão Kiko Perrone, dez anos mais velho, se tornou profissional e foi mais uma inspiração para Felipe.
“Foi uma influência muito grande. Até hoje, quando falam no Brasil que jogo polo aquático, todo mundo pergunta: 'Mas polo aquático? Por quê?' Porque meu pai me deixava lá na piscina, ficava treinando, então acabei gostando do esporte. (risos) É um jogo na água e minha família é da água. Primeiro meu pai e depois meu irmão sempre me levavam e me deixavam ali na água. Eu acabei me apaixonando por esse esporte”, afirma. Curiosamente, agora é o "tio Felipe" quem incentiva a terceira geração da família, companheiro de clube de Tomás, filho de Kiko.
Felipe Perrone brinca que, se não fosse a família, provavelmente seria mais um brasileiro tentando se tornar jogador de futebol: “Apesar de que eu sou muito ruim, com certeza não ia dar certo.” Torcedor do Flamengo (e do Barcelona), Felipe também se envolveu com outros esportes típicos de quem cresceu no Rio de Janeiro. O carioca pratica jiu-jitsu, enquanto aproveita os momentos na praia para curtir o surfe, além de gostar da pesca submarina. De certa maneira, essas outras aptidões contribuem na piscina.
**“**O jogo do polo aquático é muito completo. Você tem diversas fases. Tem uma parte de contato, então acaba utilizando alguma coisa do jiu-jitsu - obviamente só de equilíbrio, de posição, não tudo. A parte do surfe e também da pesca submarina é uma coisa de respirar, de ter calma. E está na água, isso ajuda. Como esportista de alto nível, você se acostuma a estar sempre com seu corpo funcionando e fazendo uma atividade. É uma maneira, às vezes nas férias, de conseguir manter o corpo ativo”, explica.
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O envolvimento com o Brasil continua
Como sua vida e sua família estão em Barcelona, Felipe Perrone não tem planos de voltar em definitivo ao Brasil. Todavia, o capitão da seleção da Espanha sempre vem ao país natal nas férias para cultivar suas raízes. É um dos planos para os dias livres após Paris 2024.
“Gosto de ir à praia. Minha família mora no Leme, o cantinho da praia de Copacabana. A gente aproveita a praia para surfar, para pescar, para ver os amigos. É churrasco, é ir no samba. Minha mãe fala que toda vez que eu vou, parece que eu tenho os dias contados, que eu não vou voltar. Acabo querendo fazer tudo em tão poucos dias que eu não paro. Umas férias meio diferentes (risos).”
Outro programa costumeiro de Felipe Perrone em suas viagens ao Brasil é apoiar o polo aquático, mesmo com a agenda apertada. “A gente tenta sempre dar aquela passada na comunidade do polo aquático, que é muito engajada, uma galera que vive o esporte de uma maneira muito especial”, conta. Neste ano, Felipe pretende ir ao Sesi de São Paulo, passar um tempo com as crianças e os treinadores. “Gostaria de ir a mais clubes, a mais lugares, que estão loucos que eu vá, mas senão a minha família me mata... (risos).”
O envolvimento com projetos sociais e educativos ligados ao polo aquático, aliás, é uma constante para Felipe Perrone. “Uma das principais causas de morte súbita de crianças é o afogamento. E o polo aquático tem uma parte muito legal da bola, que acaba incentivando as crianças a estarem na água e a aprenderem a nadar. Eu sempre tentei, dentro do possível no Brasil, participar e ajudar esses projetos.”, aponta. “Realmente acredito no benefício que o polo aquático pode trazer para a sociedade.”
As memórias indeléveis da Rio 2016
A chance de aumentar esse impacto do polo aquático no Brasil fez Felipe Perrone voltar para um momento muito especial: a Rio 2016. O carioca estreou muito cedo pela seleção brasileira. Tinha apenas 15 anos quando fez sua estreia no Mundial de Esportes Aquáticos, em 2001. Entretanto, seu irmão Kiko já era profissional na Espanha e a oportunidade de atuar em Barcelona pintou quando Felipe tinha 17 anos. Até pelas raízes familiares, defender a seleção espanhola se tornou um passo natural, a partir de 2004.
Ao lado do irmão Kiko, Felipe disputou os Jogos Olímpicos Beijing 2008. A Espanha ficou em quinto, mas o caçula foi eleito para o time ideal do campeonato. Sexto em Londres 2012, Felipe de novo foi votado o melhor de sua posição no torneio Olímpico. Até que a chance de defender o Brasil na Rio 2016 se tornasse irrecusável. Diante da flexibilidade no polo aquático, Felipe Perrone pôde mudar de seleção. Vinha em excelente fase por clubes, com três títulos da Champions League em três times diferentes, de 2012 a 2016.
“Eu tinha que tomar aquela decisão. Não tinha a menor dúvida de que aquele era um momento muito especial. O que estava na minha mão eu fiz. Eu tenho certeza que dei tudo o que eu podia”, recorda. “Ter família, amigos de infância, todo mundo ali acompanhando, foi muito especial. Eu me lembro de chorar vendo a abertura, porque eu sabia o que era para o Brasil aquele momento Olímpico.”
Felipe Perrone mais uma vez sublinha como a emoção é inerente ao jeito que se vive o esporte no Brasil. “Realmente é único como as pessoas reagiam, a maneira que viviam aquilo. Tem poucos países no mundo em que as pessoas vivem o esporte com tanta emoção. Eu acho que essa é a definição do esporte brasileiro”, analisa. “Talvez até venha um pouco do futebol. Eu torço pro Barcelona e pro Flamengo, e não tem nada a ver um jogo do Barcelona no Camp Nou com ver um jogo do Flamengo no Maracanã. Aqui parece que a gente está num teatro, comparado com ver o Flamengo no Maracanã."
Capitão e "camisa 10", Felipe ajudou na montagem da seleção para a Rio 2016, ao conversar com outros jogadores, repatriados e naturalizados, que se uniram ao projeto. Já o comando técnico ficou a cargo do lendário croata Ratko Rudic, dono de quatro ouros à frente de três seleções distintas. “O que a gente viveu ali, ainda com o ‘sargento’ Ratko Rudic… Quem viveu aquilo nunca mais esquece. Ele tem quatro ouros Olímpicos! A gente dizia: 'Se um cara com quatro ouros fala que tem que bater a cabeça na parede, todo mundo bate a cabeça na parede'. Seguimos a orientação dele e foi um resultado histórico. Tem muito a ver com o grande trabalho dele.”
Um bom sinal ao Brasil veio com o bronze na Liga Mundial 2015. Nos Jogos Olímpicos, a seleção ganhou três jogos na fase de grupos, inclusive da fortíssima Sérvia, que levaria o ouro. Felipe lembra com carinho que o polo aquático teve até mais destaque na TV que o futebol, que tropeçou de início. A seleção de polo aquático perdeu nas quartas de final para a Croácia, mas fez história. Oito anos depois, os laços entre os jogadores resistem: “Tenho contato com todo mundo. O que a gente viveu ali, você constrói uma relação que fica pra vida toda. É difícil, em outro âmbito da vida, ter uma uma vivência parecida com aquilo.”
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A transformação da Espanha rumo à glória
Felipe Perrone teve um antes e um depois com a seleção da Espanha. Após a Rio 2016, o carioca voltou a defender a Fúria. Também retornou ao Barceloneta, o grande clube de sua vida, após uma passagem vitoriosa pelo Jug Dubrovnik, da Croácia. Não demorou para que Felipe se tornasse capitão da seleção espanhola, num momento de renovação do elenco. Foi um período de transformação para Felipe, em seu estilo de jogo e no papel de líder.
“A gente vai aprendendo e se adaptando. O esporte muda, o jogo muda, e eu também mudo. Minhas condições já não são as mesmas de quando tinha 20 e poucos anos. A gente tem visto o Modric e o próprio Kroos, que agora vai parar, fazerem essa adaptação. Adaptação primeiro física minha, mental, e também dos outros jogadores. Sempre tentei me adaptar um pouco ao time e tentar encaixar onde precisava mais de ajuda”, conta.
O sucesso se tornou mais evidente neste retorno. Logo na volta, Felipe foi vice-campeão europeu em Barcelona. O retrospecto da Espanha desde 2004 era marcado pelo “quase”, com pratas e bronzes, além de derrotas nos pênaltis. Após a quarta colocação em Tóquio 2020, a chavinha virou a partir do Mundial 2022: a Espanha venceu a final contra a Itália nos pênaltis e ergueu a taça em Budapeste, no chamado “Maracanã do polo aquático”. Já o perseguido título inédito no Europeu 2024 teve virada com golaço de Álvaro Granados contra a Croácia, e dentro de Zagreb.
Felipe Perrone exalta a relação que se criou entre os jogadores: “A gente consegue manter um espírito de solidariedade. Quando você vê um jogo de polo aquático da Espanha e vê dos outros times, percebe que estamos o tempo inteiro ajudando uns aos outros, na defesa e no ataque, e isso é muito difícil. Normalmente, quando chegam os resultados, começa o ego. Temos isso bem calmo. Independente do protagonismo, sempre tomamos as decisões do que é o melhor pro time, não na parte individual. E isso é super difícil.”
“Vários jogadores da seleção jogam no Barceloneta, então a gente vira uma família. Passa o ano inteiro junto, entre clube e seleção. Para mim, foi muito especial acompanhar o crescimento de todos eles, que no começo eram jovens e hoje em dia muitos são estrelas mundiais. E foi muito legal essa transição de uma liderança mais ‘irmão mais velho’ a mais ‘amigo’. Aprendo muito com eles também. É uma experiência incrível”, complementa.
A chance de ouro que tem em Paris 2024
Felipe Perrone sorri ao dizer que prefere a pressão do favoritismo em vez da ansiedade do ouro que não vinha antes. “Ser favorito quer dizer que a gente vem de grandes resultados. No meu ponto de vista, é um privilégio, eu tento também transmitir isso para eles. É um orgulho poder ser favorito. Isso vem da história que a gente construiu.” Enquanto isso, sabe também que a realidade dos Jogos Olímpicos é mais exigente que Mundiais e Europeus.
“Obviamente tem pressão, mas acho que esse time está acostumado. Em Tóquio, a maioria estava na primeira Olimpíada. Nessa, chegamos mais preparados. Também não quer dizer nada, porque Olimpíada é um mundo à parte. Vamos ter que ver como vai ser o caminho, mas sinto que a gente está preparado para dar o melhor. Você sabe que ali, se errar, são quatro anos. Então é uma pressão bem diferente”, diz. “Mas é verdade que a gente chega nesse último ciclo com a confiança de ter ganho, ter perdido, ter vivido de tudo.”
Felipe, sobretudo, está mais do que acostumado ao desafio Olímpico. O capitão da Espanha rememora a estreia em Beijing 2008, quando participou da cerimônia de abertura no Ninho de Pássaro ao lado do irmão Kiko. Redimiam o pai, pela ausência em Munique 1972: “Era um momento um pouco da família, de falar 'agora estamos na Olimpíada'.” Um prazer que se repete a cada retorno, com o gosto de representar a Espanha: “A gente constrói um time, constrói uma amizade forte, mas, quando chega a Olimpíada, sente que tem todo o país atrás de você. Isso é o especial das Olimpíadas.”
Antes de Paris 2024, Felipe Perrone garantia que estava sereno e calmo, “com vontade de chegar na Vila dos Atletas”. Mas não negava um certo “friozinho na barriga”, mesmo sem se sentir nervoso ou ansioso. Também sabe que o seu momento derradeiro chega.
“Muitas vezes tem aquela coisa de falar 'ah, é a sua última chance de ganhar uma medalha'. Óbvio que eu gostaria de ganhar uma medalha, mas sou consciente de que os outros também gostariam, e isso é o esporte. São mais de 20 anos na elite, trabalhando e treinando como um louco. Poder viver essa quinta Olimpíada é um privilégio. Olho para as pessoas da minha geração, a maioria não está jogando. Obviamente quero a medalha, quero o ouro, quero tudo, mas é um privilégio poder jogar essas Olimpíadas.”
O futuro que vem pela frente
Aos 38 anos, Felipe Perrone quer saborear cada instante como atleta. Já realizou uma formação ampla, como treinador e gestor esportivo, mas prefere não pensar na transição de carreira, enquanto segue comprometido com o Barceloneta. “Gostaria de poder responder, mas não sei”, brinca ao falar sobre o futuro, citando o compatriota Rafael Nadal. “A gente se dedica 200% ao esporte. É uma mudança de vida, não uma mudança só de profissão. O esporte de alto rendimento tem uma característica muito específica de como é a tua vida. Quando passa a outra profissão, é uma mudança radical.”
Com suas especializações no tema, Felipe elogia o trabalho da Espanha no incentivo ao esporte e aos atletas de alto rendimento. O capitão analisa como o país está estruturado para os esportistas se capacitarem e atuarem na sociedade. No caso das modalidades coletivas, ainda há uma política que não depende das medalhas, que garante um apoio pleno.
Por outro lado, Felipe Perrone não perde de vista o Brasil. Demonstra um carinho grande pela comunidade do polo aquático. E cria esperanças rumo a LA28, já que a vaga direta aos Estados Unidos como anfitriões oferece mais chances à classificação brasileira.
“Obviamente, depois da Rio 2016, a gente esperava muito mais, que o esporte realmente assentasse uma base do país. Mas não pôde ser”, comenta. “Agora vem um outro momento. Muitos esportes no Brasil tiveram essa ressaca da Rio 2016. Mas com essa Olimpíada em Los Angeles, volta a abrir uma possibilidade de construir uma seleção mais forte, ter um investimento. Voltar o movimento Olímpico do Brasil no polo aquático.” Honrar a Espanha de tantas formas nunca afastou Felipe da emoção que também sente pelo Brasil.