Como o desporto de Portugal integra refugiados e transforma vidas

Por Leandro Stein
9 min|
Dorian Keletela
Foto por Carmen Mandato/Getty Images

O desporto é uma ferramenta potente de inclusão social. Os Jogos Olímpicos representam o topo, que inspira tanta gente, mas também existe uma base muito mais ampla que integra a comunidade. Em Portugal, essa força desportiva acolhe populações refugiadas que chegam ao país. O programa “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro” mostra como diferentes modalidades podem trazer oportunidades a pessoas em situação de vulnerabilidade.

O "Viver o Desporto – Abraçar o Futuro" foi iniciado pelo Comité Olímpico de Portugal (COP) em 2016. Naquele mesmo ano, a Equipe Olímpica de Refugiados (EOR) disputou pela primeira vez os Jogos Olímpicos, na Rio 2016. Esta iniciativa foi desenvolvida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para possibilitar a presença nos Jogos de atletas de elite forçados a fugirem de seus países, por causa de perseguição, guerra ou violência.

A EOR oferece um símbolo de representação a milhões de refugiados em todo o mundo, enquanto expõe o debate e auxilia na conscientização sobre o tema. Já o projeto do COP se tornou exemplo de como apoiar essa população em Portugal. Um atleta ajudado pelo “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro” chegou aos Jogos Olímpicos em Tóquio 2020 e estará de novo em Paris 2024: Dorian Keletela, do atletismo. Enquanto isso, centenas de pessoas, mesmo fora do alto rendimento, contam com a plataforma dos desportos para se integrar ao novo país.

Os refugiados, afinal, chegam a novas terras com suas vidas destruídas e tantas vezes sem sequer conhecer o idioma do local onde desembarcam. O desporto garante uma linguagem universal e um ambiente de solidariedade intrínseca, permitindo que essas pessoas se sintam incluídas e construam um novo projeto de vida.

“O programa não se destina exclusivamente a atletas, tem a intenção da integração. Desde 2016, a ideia é que todos os refugiados participem, independentemente do gênero, idade, origem. O objetivo era proporcionar-lhes atividade desportiva para se poderem integrar na comunidade portuguesa”, afirmou Maria Machado, gestora de projetos do COP, à Agência Lusa.

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Como é feito o trabalho

Segundo dados fornecidos pelo site do Comité Olímpico de Portugal, cerca de 1,5 mil refugiados foram auxiliados pelo “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro”. Por volta de 65% da população refugiada que chega ao país é integrada em atividades desportivas nas comunidades locais. São experiências de valor social e que promovem a inserção.

O COP salienta que a missão do projeto é “valorizar socialmente o desporto em Portugal". A entidade também aponta como os valores olímpicos são inerentes à abordagem: o respeito, a amizade e a excelência. Entre os propósitos está “promover a coesão e a inclusão social dos refugiados através do desporto; dar oportunidades para a prática desportiva e construção de carreiras desportivas; e fortalecer a defesa e conscientização em torno do desporto como uma ferramenta para o empoderamento social.”

O “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro” conta com uma rede de parcerias junto a instituições distintas, sejam elas organismos públicos, privados ou não-governamentais. O projeto atua em comunidades de acolhimento, que recebem refugiados em Portugal. De início, o COP oferece material desportivo, conforme a modalidade escolhida pelo beneficiado. É uma “mochila de boas-vindas”, que possibilitará a prática recorrente de tal modalidade.

No segundo passo, o “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro” permite o elo com clubes e associações que possam garantir a participação do refugiado em um grupo desportivo. E se o desempenho colocar o atleta a caminho do alto rendimento, o COP também o direciona dentro das estruturas do programa Solidariedade Olímpica. Poderá receber uma bolsa e, no topo da pirâmide, fazer parte da Equipe Olímpica de Refugiados.

“Sim, é possível mudar vidas. Sim, é possível fazer ainda mais. Não como num ato de magia, mas com ações reais, às vezes dolorosas, às vezes jubilosas. Todos estamos convocados para oferecer essa segunda (ou terceira, ou quarta…) oportunidade de recomeçar”, pontuou Maria Machado, ao Tribuna Expresso. “Que sonhos terão estes recém-chegados? Quem sabe se um sonho olímpico?”

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O reconhecimento ao programa

Além do trabalho direto com os refugiados, o “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro” também promove a formação de monitores e a capacitação de mais pessoas ligadas. E há um reconhecimento internacional que envolve não apenas o programa Solidariedade Olímpica, mas também instituições como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e a Comissão Europeia (CE).

“É este o desafio que temos em mãos: sermos exemplares na hospitalidade para combater a hostilidade, o medo e a violência. Para isso é necessário mobilizar a sociedade civil, envolvendo atletas, clubes, federações, escolas, autarquias para proporcionar um futuro de esperança àqueles que querem iniciar uma nova vida em Portugal”, escreveu Maria Machado, também ao Tribuna Expresso.

Entre as modalidades escolhidas por esses refugiados, o futebol tem um peso grande. Além de sua popularidade, influencia também o protagonismo de Portugal no desporto, sobretudo através de Cristiano Ronaldo. De qualquer maneira, os maiores símbolos do impacto do “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro” são de outras disciplinas. O velocista Dorian Keletela, nascido na República do Congo, e o boxeador Farid Walizadeh, nascido no Afeganistão, se colocam como expoentes da iniciativa.

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Dorian Keletela vai pela segunda vez aos Jogos

Keletela chegou aos Jogos Olímpicos em Tóquio 2020, aos 22 anos. Avançou nas fases preliminares dos 100m rasos e fez seu melhor tempo pessoal até então, com 10s33. O congolês era o único velocista na Equipe Olímpica de Refugiados naquela edição dos Jogos e estará também em Paris 2024, como um dos 36 desportistas da EOR. Keletela atualmente se desenvolve em Antony, cidade nos arredores de Paris, após sair de Portugal em 2023 - sem deixar de ser grato ao país que o acolheu.

"As pessoas às vezes têm a impressão de que os refugiados são maus, mas são pessoas normais. Refugiados são muito motivados em investir em suas vidas, em recriar suas vidas. São pessoas normais, que apenas tiveram que se mudar de um país que está em conflito. Para mim, ser refugiado é uma oportunidade de estar aqui e correr. Se eu não fosse um refugiado, não conseguiria correr nos Jogos Olímpicos. Posso ser uma inspiração para outros refugiados e pessoas que têm uma experiência similar à minha, porque a vida nem sempre é fácil a todos", contou Keletela, ao Olympics.com.

Nascido na cidade de Brazzaville, Keletela perdeu os pais quando tinha 11 anos, vítimas de um conflito local. O garoto passou a viver com uma tia, que fazia parte da oposição política. Diante do risco ao sobrinho, ela o enviou para Portugal em maio de 2016. Em Lisboa, o jovem de 17 anos pediu asilo e foi recebido pela Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas (CACR). Não falava o idioma e precisava absorver as diferenças culturais. O desporto, então, se tornou um caminho.

Keletela já praticava o atletismo na República do Congo e participou dos Jogos Africanos da Juventude. A aptidão se tornou evidente e, com apoio do “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro”, ele foi encaminhado ao Sporting. O adolescente precisou aperfeiçoar seu estilo de corrida e teve o melhor apoio possível: foi treinado por Francis Obikwelu, nigeriano de nascimento que se mudou a Portugal aos 16 anos e, no novo país, conquistou a medalha de prata nos 100m rasos em Atenas 2004. Keletela, seu pupilo, alcançou os Jogos e se provará de novo em Paris 2024.

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Foto por © UNHCR/Bela Szandelszky

Walizadeh e a escolha ajudada por Cristiano Ronaldo

Outro atleta beneficiado pelo “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro” que chegou à elite do desporto é Farid Walizadeh. O pugilista não disputou os Jogos Olímpicos, mas participou das seletivas tanto para Tóquio 2020 quanto para Paris 2024 – o que também atesta seu alto nível competitivo. Ainda esteve nos Jogos Europeus 2023.

Walizadeh nasceu no Afeganistão e, com um ano de idade, foi deixado por seus pais com uma família adotiva, por causa da perseguição religiosa. Aos sete anos, o tio adotivo colocou o menino num grupo de 30 pessoas que fugiu do país. Walizadeh atravessou áreas montanhosas e desérticas a pé. Seu grupo dormia de dia e caminhava à noite, para evitar ataques. A travessia incluiu ainda os territórios de outros países vizinhos, até que chegassem à Türkiye.

Durante anos, Walizadeh viveu em um centro de refugiados em Istambul. Tentou se refugiar na Grécia, mas seis vezes seu barco afundou e ele foi mandado de volta pelas autoridades gregas ao território turco. Quando tinha 15 anos, foi aceito por um programa de integração. Poderia ir a dois países diferentes: Portugal ou Estados Unidos. Para ele, uma escolha óbvia.

"De Portugal só conhecia o Cristiano Ronaldo. Dos Estados Unidos conhecia os militares que estavam em guerra no meu país. Naturalmente escolhi Portugal", contou, ao jornal I Online. "Quando falo com refugiados que estão noutros países europeus, dizem-me que têm problemas de integração. Eu não senti nada disso. As pessoas em Portugal são simpáticas, não tive qualquer problema. A maioria dos meus amigos são portugueses."

Walizadeh também foi recebido pela Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas (CACR). Ainda na Türkiye, o afegão treinou kung-fu e taekwondo. Quando foi integrado pelo “Viver o Desporto – Abraçar o Futuro”, escolheu o boxe. Logo se destacou em torneios de base, prosperando na modalidade. Viver o desporto deu a ele um futuro: completou um curso para ser treinador de boxe e iniciou a faculdade de arquitetura. Há seis anos, localizou sua família afegã e também ofereceu nova vida a eles, em seu país do coração: Portugal.