Mateus Alves e o sucesso do boxe brasileiro: ‘Uma medalha Olímpica não se ganha com improviso’
Olhar fixo. Poucas palavras entre um assalto e outro. Lábios que balbuciam o estudo do combate enquanto se desenrola. As mãos no ombro do pugilista quando da entrada e da saída do ginásio. Símbolo de lealdade do treinador com o atleta. É o silencioso e tangível “estou aqui”. Assim é Mateus Alves, treinador da seleção brasileira de boxe.
A modalidade no Brasil vive um excelente momento. Já são 10 vagas asseguradas pelos pugilistas do país em Paris 2024, mais com as que podem vir no Pré-Olímpico de Bangcoc, o último antes dos Jogos.
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Na capital da França, irão em busca de manter a senda dos atletas do Brasil de pódios em Jogos. Nas últimas três edições foram sete medalhas Olímpicas, depois de mais de quatro décadas da primeira e, até então, única, de Servílio de Oliveira (México 1968).
Resultados que saltam aos olhos e impressionam. A “nobre arte” esteve por muitos anos distante dos holofotes do país e testemunhou o crescimento e popularida de outras modalidades de combate, como as artes marciais mistas (sigla MMA em inglês para Mixed Martial Arts) e suas ligas.
Hoje, o cenário é outro e o treinador da equipe brasileira, o gaúcho Mateus Alves, tem importante papel dentro dele.
O Olympics.com foi entrevistá-lo a fim de saber o que tem levado a este bom momento do boxe nacional e os fatores que têm conduzido ao crescimento e desenvolvimento da “nobre arte” no Brasil, da formação à seleção.
Uma análise sobre o boxe brasileiro
Sem meias palavras, Mateus vai direto ao ponto quando faz uma análise sobre o boxe brasileiro. Ao longo de todas essas décadas, desde Éder Jofre e Servílio de Oliveira, passando por Adilson Rodrigues, o “Maguila” e, mais recentemente, Acelino Freitas, o “Popó”, nunca faltaram talentos no país para a modalidade.
Segundo ele, tais talentos são descobertos pelos projetos sociais e absorvidos pelas federações locais. Iniciativas que se multiplicaram por todo o território brasileiro e potencializado pelo bolsa-atleta, que distribui recursos para pugilistas que apresentarem resultados locais, nacionais e internacionais. “O pilar do boxe do Brasil é composto pelos treinadores que estabelecem estes projetos com dinheiro do próprio bolso”, reitera Mateus.
O treinador explica que o boxe de competição não está inserido nos clubes sociais ou em colégios particulares. Ele concorda que a situação pode mudar, sim, o esporte pode fazer parte do currículo escolar, mas reforça: “De onde vem o boxe do Brasil? Dos projetos sociais de periferia, dos treinadores que estão dando boxe para molecada.”
Boxe tem conquistado mais praticantes e torcedores
Segundo ele, outros esportes de combate – como o MMA - estiveram em evidência por conta de haver sempre um brasileiro entre os melhores. Atualmente não há muitos como antes e, com as conquistas Olímpicas do Brasil nos ringues, a torcida se volta para o boxe.
“Quando começa a ganhar, começa a ter atenção da mídia”, coloca Mateus, que se lembra: “Conseguimos um nocaute em uma final Olímpica”, acrescentou ao se lembrar do ouro de Herbert Conceição em Tóquio 2020.
Mateus vê com bons olhos os desafios de boxe entre influenciadores e pugilistas, como os que envolveram o ex-BBB, Kleber “Bam-Bam” e Popó: “Não sou contra esses eventos, fazem com que as pessoas se interessem mais.”
Entretanto, o treinador tem algumas ressalvas: “Tem que ter cuidado, o boxe não é igual ao futebol.” Não basta apenas subir no ringue. É preciso extremo preparo. “Todos esses eventos poderiam envolver centenas de treinadores que não seguiram carreira no esporte.”
A chave para a virada do boxe brasileiro
De acordo com o treinador, estabelecer uma equipe Olímpica permanente, em 2009, foi o primeiro passo – e essencial – para o sucesso e reconhecimento internacional do boxe brasileiro.
Mateus chegou à seleção no ano seguinte, em 2010, e tratou logo de identificar os aspectos sobre o ringue que afetavam os resultados dos pugilistas do país mundo afora.
“Durante muitos anos nós tínhamos uma deficiência na força, potência e cansávamos quando a gente pegava boxeadores muito fortes”, revela o treinador. A preparação passou a ser mais focada na força e menos na resistência. Encontrou-se, então, um meio termo, que passou a ser a essência do boxe do Brasil. Uma identidade que contribuiu para as medalhas Olímpicas, anos mais tarde.
“Nosso boxe é tático, refinado. Bom contato visual, boa velocidade de tronco, de meia, longa distância, que combina golpes retos e curvos. Um boxe solto e leve”, descreve Mateus. “O Brasil é respeitado.”
Mateus Alves: ‘O boxe é um xadrez no ringue’
Apaixonado pelo que faz, Mateus não esconde seu fascínio pelo esporte e, assim, busca explicar o boxe: “O público vê duas pessoas trocando socos. Mas é muito mais que isso. O boxe é um xadrez no ringue. É prever o movimento do adversário. É técnico e tático, acima do físico.”
O treinador não esconde que o boxe envolve riscos, mas é justamente minimizá-los que o deixa fascinado. “Tentar entender a magia dele [boxe] me consome totalmente. Eu consumo o boxe 24 horas por dia há 18 anos.”
Mas de onde vem a paixão pela “nobre arte”?
Inquieto e curioso: a trajetória de Mateus Alves
Inquieto desde guri, como mesmo diz, começou no taekwondo aos 14 anos, mas dos 15 aos 18 preferiu kickboxing e muay thai, porque gostava mais de usar as mãos.
A caminhada o fez conhecer o boxe, no primeiro ano do curso superior em Educação Física. Tinha 18 anos e foi através do então treinador da seleção gaúcha, Paulo Cafuringa.
Desde o primeiro treino não largou mais a modalidade. No entanto estava certo de que atleta não seria. Iria se dedicar à atividade de treinador. “Nunca quis ser atleta por conta da pouca oportunidade de profissionalismo”, explica.
Especializou-se nos cursos que as federações estaduais proporcionavam, montou sua própria academia e liderou projeto social com o boxe, que atendia 500 crianças no Gigantinho, ginásio do Sport Club Internacional, ao lado do estádio do clube, o Beira-Rio.
À frente da seleção estadual, colocou os gaúchos entre as três melhores equipes do país, ao lado de Bahia e São Paulo. Seu trabalho chamou a atenção do então coordenador técnico da Confederação Brasileira de Boxe, o cubano Otilio Olivé Toledo, que em 2010 o convidou para arrumar as malas e tomar rumo para a capital paulista, como treinador assistente da seleção brasileira.
“Tinha uma vida muito confortável em Porto Alegre. Aceitei o convite ganhando em São Paulo menos de um terço do que eu ganhava por lá. Vim pra cá [São Paulo] e não voltei mais”, lembra-se Mateus.
Durante a lua de mel, surgiu o primeiro convite para viagem internacional com uma seleção brasileira. Deixou a esposa, Juliana, no Rio de Janeiro e viajou para torneio na República Dominicana. “Ela sabia que eu queria muito isso”, recorda-se.
Em meio à desconfiança com relação ao seu nome, concentrou-se ainda mais para as atividades de treinador. Em pouco tempo de seleção, fora escolhido para ser um dos três membros da comissão técnica em Londres 2012.
“Não tirei nenhuma foto [nos Jogos de Londres], não tenho nenhum registro de lá, [a desconfiança] acabou me atingindo. Mas fui levando, trabalhando. Você conquista pelo conhecimento e trabalho”, observa.
Os resultados falam por si.
Na capital britânica o boxe do Brasil foi ao pódio em três ocasiões, depois de 44 anos. Medalha de prata com Esquiva Falcão no peso médio; bronze com Yamaguchi Falcão (meio-pesado) e Adriana Araújo (leve).
Objetivos para Paris 2024 e para o boxe brasileiro
Filho de um engenheiro com uma professora de música clássica, com um irmão violinista e o outro, regente, Mateus usa a sensibilidade e precisão, herdadas da família, para detectar e aprimorar o fino detalhe da nobre arte.
O pai da Cecília, da Maitê e da Olívia, quer mais respeito para o boxe do Brasil. Quer mostrar que em Paris 2024 os brasileiros podem fazer melhor, que Tóquio não foi um “ponto fora da curva.” Mostrar que o boxe é um esporte consistente e que gera continuidade de vitórias.
“Quero que o boxe seja como o judô e o vôlei são para o esporte do Brasil”, exemplifica Mateus.
“É preciso deixar claro que uma medalha Olímpica se ganha com investimento, disciplina, treinamento e continuidade. Não com improviso”, enfatiza. “O boxe como a gente conhece tem 200 anos e é um fenômeno social. Tira muito mais gente da pobreza do que você imagina”, conclui.