Boxe, maternidade e o sonho Olímpico de Nancy Moreira: 'Com determinação e foco tudo se consegue'
Bolsista da Solidariedade Olímpica, pugilista cabo-verdiana começou no esporte aos 23 anos. Aos 29, tornou-se mãe. Aos 34, foi campeã africana e é a quarta do mundo em sua categoria (até 66kg). Com o sonho de estar em Paris 2024, ela é um dos grandes nomes que lutam no Pré-Olímpico Africano, no Senegal.
Cabo Verde é um arquipélago ao noroeste da África, que também tem o português como língua oficial. Pouco mais de 600 mil habitantes lá vivem. Outros milhares saíram das ilhas para tentar a vida em outros lugares.
Um país pequenino, orgulhoso de sua história, de sua vanguarda política no continente e dos seus atletas que fazem sua bandeira ser vista e reconhecida por todo o mundo. Recentemente, as mãos certeiras da sua seleção masculina de basquete deram muitas alegrias para a sua torcida, ao participar pela primeira vez de uma Copa do Mundo.
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É também através das mãos que Ivanusa Gomes Moreira, simplesmente Nancy Moreira, coloca Cabo Verde no topo do esporte.
Ela começou no boxe aos 23 anos. Tarde. Aos 29, foi mãe. Hoje, aos 34, é campeã africana da sua categoria (até 66kg) e atual quarta colocada no ranking mundial.
Nancy agora está em Dacar, no Senegal, para a disputa do Pré-Olímpico Africano de Boxe. No olhar, o sonho de dar uma vaga para o seu país e ter a chance de representá-lo em Paris 2024.
"Com determinação e foco tudo se consegue", resume Nancy.
Em uma idade em que muitas pensam em pendurar as luvas, nada parece pará-la.
Com toda a sua experiência de vida e de ringue, dias antes de embarcar para o Senegal, ela conversou com o Olympics.com em entrevista exclusiva. Falou sobre o título africano e o objetivo de Paris, mas disse qual exemplo quer deixar, com toda a sua vencedora trajetória de luta - e de lutas.
Chegou a Portugal aos oito anos; no boxe, aos 23, através de um cunhado
Nancy nasceu na cidade da Praia, capital de Cabo Verde, em região conhecida como Tira-Chapéu. Ainda pequena, viveu com uma tia por três anos, enquanto os pais estabeleciam vida em Portugal como imigrantes. "Era uma boa infância [em Cabo Verde]", lembra-se.
Aos oito partiu para a Europa, para encontrar pai e mãe, passando a viver no Porto. Não foi fácil. "No início foi complicado porque eu era pequena e era um mundo completamente diferente. Naquela altura havia muito preconceito, muito racismo e não era escondido, mas passados alguns anos a minha mãe conseguiu comprar uma casa e outro em outra cidade, que neste caso era [Vila Nova de] Gaia e desde aí foi bem melhor", explica.
Na escola conheceu o atletismo, mas foi mesmo para o futebol. Torcedora fanática do Futebol Clube do Porto, jogou campo e, por cinco anos, o futsal.
Mas foi aos 23 anos, que umas férias e um ganho de peso, mudaram sua vida.
"Eu tinha um cunhado [António Pedro] que era campeão de boxe. Então ele disse para eu ir fazer um treino com ele, porque na altura estávamos em férias e ele falou 'tu vens comigo para fazer um treino de boxe e ver se gostas'. E eu fui com ele. Só que fiz um treino em que fiquei de cama por uma semana, uma semana de cama, e nunca mais fui. Desapareci por um mês", recorda-se.
No entanto, o ganho de peso continuava a incomodá-la: "Estava ganhando quilos e quilos até que eu disse 'não, eu vou voltar lá outra vez'. Voltei com ele [o cunhado], treinei e fiquei por cerca um mês, aí mudamos de equipe, fui para outra academia em que fiquei por sete anos. Foi lá nessa nova equipe que eu que me tornei atleta mesmo."
Boxe mudou sua vida
Nancy não esconde que procurou a modalidade em busca de perceber resultados em seu corpo. Queria não só perder peso, mas tonificá-la. O resultado lhe surpreendeu, sim. Já não podia mais parar, mas não apenas por isso.
Estava apaixonada pelo boxe. E mais, estava apaixonada pelas competições, a ponto de perder 10 quilos em um ano para só para levar à lona a melhor pugilista portuguesa da altura.
"Como eu comecei tarde, sem a base de haver começado cedo, eu sabia que eu tinha que me dedicar completamente àquilo. Eu queria ser alguém e queria ser apreciada por isso. Então eu treinei, eu treinava mais que toda a gente. Eu era a primeira a chegar e a última a ir embora, nunca pensei em seguir isso ou aquilo, era natural. Eu fazia aquilo porque era assim que tinha que ser, e eu seguia. Eu não estava imitando ninguém, mas eu sabia que por vezes para eu conseguir alguma coisa eu tinha que fazer mais do que outros. Então eu era sempre a primeira a chegar e a última a sair", explica Nancy.
O boxe também proporcionou a oportunidade de conhecer seu marido, Jorge Silva, seu treinador e fonte de inspiração: "Ele é atleta profissional de boxe, então ele tem bastante, bastante experiência. É um dos melhores atletas em Portugal. Já foi número um e conseguiu importantes títulos. É um atleta com bastante experiência e que sabe muito. Sou uma sortuda por tê-lo ao meu lado."
A importância da bolsa da Solidariedade Olímpica
Competitividade e obstinação levaram-na ao nível internacional muito rapidamente. Com dupla nacionalidade (ela também tem a portuguesa), optou por competir por Cabo Verde. "Amo as pessoas do meu país, mesmo sem conhecê-las e pela simplicidade do povo, não posso explicar. Foi onde eu nasci", coloca.
Relembra de 2019 ter sido ano de uma das competições mais especiais, que a apresentou ao mundo: "Foram os Jogos Africanos, em Rabat [Marrocos]. Dei a única medalha de Cabo Verde, um bronze", orgulha-se.
Seu crescimento no boxe, mais os resultados internacionais por Cabo Verde, fizeram com que ela fosse selecionada para receber a bolsa da Solidariedade Olímpica. A cada três meses é a ela fornecido um valor que a ajuda nos gastos com a preparação e com os torneios.
No entanto, no universo do esporte de competição, não é só isso:
"Graças aos torneios eu consegui subir no meu ranking, porque estava em 11º quando comecei, agora estou em quarto lugar e possivelmente estarei em segundo [lugar] no mundo por conta da bolsa. Trabalhei muito para isso".
Um estilo próprio: 'Nancy Ali'
Ao ser perguntada do seu estilo de luta, ela é direta: "Bem Olímpico. Bem solto, não muita força, trabalhando bem as pernas, como sou alta, braços compridos aproveito bem isso e esse é meu estilo, parecido com o do Muhammad Ali. Por isso do meu apelido, 'Nancy Ali'."
Assiste a vídeos de antigos combates e gosta de observar referências como Canelo Álvarez e Floyd Mayweather. Quando não está no ringue, estuda inúmeros combates e as principais adversárias. Participa de torneios menores. Está sempre se preparando, a fim de estar na melhor forma e então agarrar o seu melhor momento.
A maternidade tardia
O boxe fez com que ela adiasse o sonho de se tornar mãe, aos 29 anos. Pouco antes de começar a se preparar para Tóquio 2020, deixou os treinos de lado. Ganhou 30 quilos, que perdeu em um ano para voltar a lutar. Voltou e continuou somando pódios e troféus na sua galeria.
"Fui medalha de ouro mesmo enquanto amamentava", comentou.
Hoje com cinco anos de idade, seu filho Eduardo Miguel não entende muito do esporte e de vez em quando pede para ela parar, simplesmente para poderem brincar juntos: "Por que estou sempre de pé e às vezes não posso levá-lo ao parque, porque estou cansada. Ele parece um pouco cansado disso, mas já expliquei que agora é só mais uma vez."
Será?
Seu melhor momento: o título africano, em agosto
"Poder ir o mais longe possível", diz Nancy ser seu lema em tudo aquilo que se propõe a fazer.
Dentro dessa caminhada, estava o - também sonhado - título africano. Para isso, o calendário estava já reservado a fim de disputá-lo em Yaoundé, nos Camarões, no início de agosto de 2023.
Para não se surpreender com os preços da capital camaronesa, levantou recursos através das redes sociais. Além disso, convenceu o marido de acompanhá-la, de última hora: "Então eu virei para ele e disse ‘não posso ir sozinha', e ele 'não acredito’. Aí eu ‘não posso, não posso’. Pegamos um cartão de crédito que tínhamos, compramos a viagem na hora e graças a Deus conseguimos o mesmo trajeto que eu ia fazer."
Um risco oportuno que deu a Nancy o seu melhor resultado na carreira.
"O melhor momento foi ter ganho o Campeonato Africano. Sem dúvida foi uma grande conquista e não só, é a melhor luta para mim até hoje. Eu tenho 120 combates e a melhor delas foi o primeiro deste campeonato africano, contra quem eu perdi no pré-Olímpico há quatro anos [Emily Nakalema, de Uganda]."
A força das mulheres do boxe africano
O recente título africano coloca Nancy entre as favoritas na sua categoria, em Dacar. Ela sabe que será a adversária a ser batida e vai encontrar uma geração de pugilistas africanas bem diferentes do que em relação ao passado.
"Nós africanas já hoje em dia não ligamos só à força. Já temos atletas com uma técnica muito avançada, não vemos a força e brutalidade. Conseguimos num combate ser mais táticas e não só desferir golpes. Agora quem for mais inteligente é quem ganha, quem pontua mais é quem ganha. E acho que é cada vez estamos a ficar melhores", explica.
Uma dessas atletas do boxe da África é a moçambicana Alcinda Panguana, que foi ouro na categoria até 71kg em Yaoundé. Panguana vai descer para os 66 quilos para competir em Dacar. Além da língua portuguesa, as duas partilham a amizade. "Nós somos amigas, nos damos muito bem, ficamos no mesmo hotel, ela agora vai para os 66 [quilos]. Então vamos ter que nos cruzar. É mais uma grande adversária, vou dar o meu melhor para vencer, obviamente."
Estar em Paris 2024 significa deixar um exemplo
Durante a entrevista Nancy confessa que não entendia muito bem antes o que significava uma classificação para os Jogos, depois de ter participado do Pré-Olímpico para Tóquio 2020. "Tudo aconteceu muito rápido na minha carreira", disse.
Hoje, ela vê a chance de competir em Paris com um outro olhar: "Eu me vejo com o bilhete [de embarque]. Quando estou treinando é isso que eu falo e penso, naquele bilhete na minha mão e na felicidade que vou sentir, que vou dar ao meu povo e à minha família. Seria uma grande vitória e vou lutar com tudo o que realmente tenho."
Entretanto, mais que os resultados esportivos, a pugilista cabo-verdiana encerra sem deixar de mencionar que os exemplos são tudo, e que é preciso seguir em frente: "Tem que lutar. Não podemos desistir nunca e é preciso acreditar no seu sonho."
"Quero mostrar que outras mulheres lutem pelos seus sonhos. E eu quero muito ser exemplo para as outras mulheres."
Como acompanhar Nancy Moreira no Pré-Olímpico Africano de Boxe
Toda a ação, das quartas de final em diante - a partir de quarta-feira, 13 de Setembro -, será transmitida ao vivo no Olympic Channel através do Olympics.com e também pelo app oficial dos Jogos Olímpicos.
Nancy Moreira estreou na segunda-feira (11 de setembro) com vitória sobre Kasemang Aratwa (BOT), pelas oitavas de final.