A escalada combinada é uma das disciplinas mais criativas dos Jogos Olímpicos. E a imaginação flui em diferentes sentidos. As competições de Boulder & Lead contam com configurações diferentes de paredes a cada etapa, que desafiam os atletas. Eles precisam ser imaginativos para concluir os “quebra-cabeças”, seja para resolver os quatro problemas do Boulder ou para chegar ao topo no Lead. Antes que as disputas aconteçam, entretanto, alguém precisou criar as vias e problemas que colocarão à prova os melhores do mundo.
A tarefa de construir os desafios cabe ao chamado “route setter”. São eles que misturam os diferentes tipos de agarras e módulos para testar os escaladores. Não deixa de ser uma missão árdua pensar numa rota equilibrada, que exija diversas habilidades, se adapte a biótipos distintos e faça os participantes fritarem os miolos na hora de encontrar a solução para o movimento ideal.
“Há um elemento artístico e muitos de nós também temos um lado mais analítico, de engenharia”, afirmou em 2021 o britânico Percy Bishton, líder dos setters no Boulder em Tóquio 2020, ao jornal The New York Times.
Quem assiste à escalada esportiva pode comparar os paredões do Boulder & Lead até mesmo com um quadro de arte abstrata, com todas as suas cores e formas. Só que, no caso do route setter, a intenção do artista precisa ser desvendada de forma concreta - através do corpo do escalador. A interpretação dessa linha de raciocínio pode resultar em movimentos variados, ainda que a resposta almejada seja a mesma: o pódio.
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O cenário camaleônico da escalada combinada
Após a estreia Olímpica da escalada esportiva em Tóquio 2020, o formato da competição mudou para Paris 2024. Serão duas disputas distintas por medalhas, uma de escalada de velocidade e outra de escalada combinada - com as disciplinas de Boulder & Lead.
No Boulder, os atletas encaram quatro escaladas diferentes de 4,5m, com os chamados “problemas” a se resolver. Alcançar o topo vale 25 pontos, com pontuações menores em zonas intermediárias e descontos por tentativas frustradas. Já no Lead, os escaladores têm uma só tentativa para subir o paredão de 15m, numa via guiada, com uma corda de segurança que precisa ser presa a cada trecho. A pontuação é progressiva, conforme o percurso é completado, chegando no máximo a 100 pontos. Agarras mais altas valem mais pontos. O tempo é de seis minutos.
Se a escalada de velocidade exige que os competidores alcancem o topo de maneira mais rápida, a somatória de pontos no Boulder e no Lead testa qualidades bem mais variadas dos atletas. E oferece desafios camaleônicos: cada parede é montada de uma maneira distinta para cada fase do campeonato. Os escaladores só conhecem as rotas no momento da competição. Podem analisá-las do chão por alguns minutos, mas sequer é permitido assistir aos seus adversários antes das suas próprias provas.
Nesta mutação constante das paredes se insere o trabalho árduo e engenhoso do route setter: oferecer cenários que indiquem os melhores escaladores. "Ninguém nunca solucionou aquele problema corretamente. Talvez seja essa a atração do trabalho, ou o que o torna tão assustador: você não sabe se acertou até o Dia D", contou Percy Bishton, ao The New York Times.
O trabalho criativo e também braçal do route setter
O route setter tem um trabalho bastante imaginativo, ao construir uma rota que seja tanto desafiadora quanto possível de ser superada pelos melhores. Eles precisam prever os movimentos e diferentes sequências de ações. A criatividade do route setter precisa estar a serviço da criatividade do escalador.
Para compor os percursos, os route setters contam com vários elementos. Os módulos são grandes peças geométricas que adicionam profundidade à escalada. Através desses poliedros, os competidores precisam explorar uma terceira dimensão além das direções planas na parede. Já as agarras servem de pontos de apoio às mãos e aos pés. Têm diferentes formatos e texturas. Mais do que isso, determinam a forma como os escaladores vão se segurar. Regletes, pinças, abaulados e outros tipos de agarras determinam as exigências na sustentação.
A parte criativa do route setter, contudo, não se dissocia do trabalho braçal. Afinal, são eles próprios que também constroem as rotas de escalada, com uma parafusadeira nas mãos. As paredes são repletas de furos, que permitem a instalação dos módulos e das agarras. Depois de configurada a rota, são feitos persistentes testes, para ver se os movimentos imaginados são mesmo factíveis. Ajustes acontecem para dificultar ou facilitar ações - com adições de agarras, mudanças de posição ou mesmo de ângulo das peças para contribuir às pegas.
"As pessoas pensam que temos papel quadriculado com rotas mapeadas e ideias, mas não é assim que acontece - certamente não para mim e não para outras pessoas com quem trabalharei. É um processo muito orgânico e criativo. Chegamos, olhamos para a parede, temos as agarras e módulos na nossa frente, escolhemos algo que gostamos e começamos a montar o Boulder. É basicamente assim. Se está legal, continuamos até ficar incrível. Se não, então tiramos e tentamos algo diferente", relata Percy Bishton, em outra entrevista, à revista Climbing.
"Às vezes acontece de imediato - você pode colocar as agarras e tem algo incrível de primeira. Mas isso raramente ocorre. Normalmente, há muitos ajustes e testes intermináveis", complementa. "A quantidade de tempo que gastamos colocando as agarras é pequena em comparação com o tempo em que testamos os movimentos de novo e de novo e de novo, tentando conseguir algo que esteja correto."
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10 características de uma boa rota
- Ser desafiadora sem se tornar impossível de ser escalada
- Equilibrar elementos de risco, intensidade e complexidade
- Ter estímulos técnicos que permitam variadas soluções, não só uma
- Oferecer uma rota acessível a diferentes tipos de corpo
- Compreender as diferenças de gênero entre masculino e feminino
- Evitar movimentos repetitivos, que desgastem músculos específicos
- Preservar a integridade do atleta diante do risco de lesões
- Ter uma dificuldade fluída, que não acumule o risco no final
- Pensar no impacto visual que o percurso terá através de cores e formas
- Pensar no impacto visual que o percurso gerará através dos movimentos
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O route setter também é um escalador qualificado
Por tudo isso, os route setters não são apenas criadores de percursos: eles também precisam ser escaladores competentes. Alguns são inclusive ex-competidores. "Competi algumas vezes quando era mais novo. Percebi que, embora gostasse, não era minha parte favorita de escalar. Montar o percurso e criar coisas para os outros competirem, por outro lado, realmente capturava minha imaginação", contou Percy Bishton.
A Associação Brasileira de Escalada Esportiva (ABEE) oferece certificações de route setter que exigem, além de experiência prévia na montagem de rotas, também capacidade de escalada em níveis mais elevados de dificuldade técnica, conforme as graduações oficiais da prática. O mesmo ocorre nas qualificações da Federação Internacional de Escalada Esportiva (IFSC). O trabalho em ginásios comerciais da modalidade também pode contribuir ao início da carreira dos route setters rumo às competições de escalada esportiva.
As vivências como escaladores e os cenários em que praticam a escalada acabam invariavelmente influenciando os route setters. "Sempre escalei pedras de arenito em Peak District e é um estilo bastante único de escalada. Não há muitas agarras óbvias, há muitos movimentos sutis. Suponho que, se algo influencia meu estilo no setting, seria a escalada naquele tipo de pedra, com certeza", revela Bishton. "Acho que meu estilo é muito mais inspirado pelas escaladas que faço ao ar livre."
E o planejamento de uma competição sugere a formação de uma equipe diversa de route setters para criar os desafios. Devem ser pessoas com diferentes vivências, que tendem a contribuir com variadas ideias e formas de interpretar os percursos. Nos Jogos Olímpicos, os problemas do Boulder são construídos por uma equipe de quatro route setters, enquanto quatro profissionais distintos também trabalham na via do Lead. A montagem das rotas geralmente acontece nos cinco dias anteriores à competição - e, claro, protegidas dos olhares dos escaladores.
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Os desafios técnicos para se levar em consideração
As criações dos route setters botam em xeque as habilidades dos escaladores, incluindo a resiliência para lidar com os extremos do corpo. "Acho que o bouldering pode ser um esporte de contato total. Se você não precisa usar sua coxa, então é como se não tivesse aquele brilho especial para mim. Eu coloco todo o tipo de coisas esquisitas e contorções estranhas, então esse é meu estilo", analisa Bishton.
Um bom percurso precisa avaliar a capacidade técnica do atleta em diferentes aspectos e seu controle sobre o corpo. O route setter tenta encontrar, através da rota, um equilíbrio entre as valências. O percurso ainda deve considerar a fluidez e a progressão dos escaladores, se refletindo em sequências de movimentos, não só em momentos estáticos. Não adianta colocar a parte mais desafiadora do problema no Boulder, chamada de crux, mais perto do topo - quando o cansaço naturalmente será maior. O mesmo raciocínio precisa ser respeitado na via do Lead, ainda mais desgastante pelo longo trajeto.
"Quero que seja uma competição de escalada. Não quero que seja algo onde nós apenas olhamos para a habilidade ginástica dos escaladores ou quão fortes eles são. É legal criar um 'campo de jogo' se você quiser, um conjunto de problemas que testarão todas as habilidades de escalada”, pontua Bishton. “Quero apenas assegurar que o melhor escalador vença porque, você sabe, essa é a ideia."
Uma escala quantifica diferentes elementos. A chamada Escala RIC avalia, de 0 a 5, três parâmetros. O risco está ligado aos pontos de queda e sem a possibilidade de retorno, que trabalham aspectos mentais do atleta anteriores ao movimento, como a confiança e a segurança. A intensidade corresponde à exigência física sobre o escalador. Já a complexidade visa o raciocínio que projeta a ação, a partir de transições que não se sugerem tão óbvias.
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Os aspectos subjetivos e o jogo mental
Existe até mesmo uma noção de paisagem artística no route setting. A beleza visual de uma rota também faz a diferença para chamar o público. Os route setters, além do mais, são aqueles que podem exigir a plasticidade dos movimentos dos escaladores. Esses gestos técnicos devem ser pensados para valorizar a competição - sobretudo num esporte novo para tanta gente através dos Jogos Olímpicos.
“Um dos meus objetivos como route setter tem sido encorajar os outros a praticar o esporte e criar movimentos que empolguem e inspirem. O movimento que ajudamos a criar irá invariavelmente ter algum efeito sobre como os espectadores de primeira viagem experimentarão e entenderão o esporte”, analisou Garrett Gregor, ao UK Climbing. O americano, que fez parte da equipe de route setters em Tóquio 2020, chefiará os responsáveis pelo Boulder em Paris 2024.
E a escalada combinada ainda possui uma face oculta. Os escaladores não competem somente entre si. Existe um jogo entre criador e criatura, relativo ao route setter. Pode ser decisivo aos atletas entenderem como os setters pensam as rotas, especialmente para encontrar soluções relativas à complexidade ou mesmo descobrir caminhos mais simples que foram ignorados pelos construtores. E aí se concentra um dos grandes charmes: a aleatoriedade sempre presente, nova a todos, e a vitória reservada àquele que melhor supera o desconhecido.
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